Taciana Santos de Souza*
October 30, 2019|Política de drogas
Em 1909, foi realizada a primeira Conferência Internacional sobre o Ópio em Xangai, na China, onde diversos países reuniram-se para discutir os primeiros movimentos que tentavam reprimir, sob um ponto de vista mais global, o uso dessa substância, configurando um marco dentro do movimento de proibição de drogas. Passados 110 anos, constata-se que o uso de opiáceos – e de outras substâncias psicoativas – continua sendo motivo de preocupação, como é apontado pelo Escritório de Drogas e Crimes das Nações Unidas (UNODC). Ao longo desse período, inúmeros tratados, programas governamentais e ações foram tomadas, mas pouco sucesso obteve-se com relação à proibição de drogas. Isso deixa a impressão de estarmos permanentemente andando em círculos no que se refere à política de drogas, tendo em vista que não obtivemos avanços e pouco saímos do mesmo lugar.
Apesar de todos esforços governamentais para reprimir e acabar com o mercado de drogas, por que não se pôde cessar este mercado? O uso das Ciências Econômicas pode ser útil para responder esta questão![1]Ao entender o funcionamento e a dinâmica desse mercado ilegal, é possível desmistificar alguns argumentos comumente utilizados por políticos que discursam defendendo a lógica proibicionista. Nesse sentido, o objetivo deste artigo é abordar, brevemente, três falácias identificadas no discurso populista da Guerra às Drogas, sob a perspectiva econômica desse fenômeno.
FALÁCIA 1:“Vamos reprimir o narcotráfico para reduzir o consumo!”
A princípio, o raciocínio que fundamenta essa frase é bastante lógico: com maior aprisionamento de traficantes e apreensão de drogas é possível reduzir a oferta dessas mercadorias ilegais. Com a oferta reduzida, os preços sobem e a demanda por drogas cai – ou seja, os consumidores comprariam menores quantidades de drogas. Faz sentido, não? Contudo, essa é uma falácia. Apesar de todos os esforços policiais para interceptar o comércio de drogas, o consumo não diminuiu e o preço das drogas caíram!
O levantamento de dados do World Drug Report da UNODC mostra que o mercado consumidor tem permanecido estável, acompanhando o crescimento da população mundial. A tabela a seguir apresenta os dados:
Tabela 1 – Estimativa de usuários de drogas ilícitas no mundo, em número e em proporção – 2000-2012
Fonte: UNODC (2003, 2004, 2005, 2006, 2007, 2014). Elaboração própria.
Além disso, o preço médio de drogas como a cocaína e a heroína, que correspondem aos 2º e 3º grupo de substâncias psicoativas de maior valor gerado – perdendo na classificação apenas para a maconha – caíram nos últimos anos. Os gráficos 1 e 2 apresentam a variação dos preços para o nível de atacado e de varejo nos Estados Unidos e na Europa, no período de 1990 a 2009.
Gráfico 1 - Preço de varejo da heroína, ajustado pela inflação, na Europa e nos Estados Unidos, em US$/grama – 1990-2009
Fonte: UNODC (2011). Elaboração própria.
Gráfico 2 - Preço médio da cocaína no atacado e no varejo ajustado pela inflação de 2009, na Europa e nos Estados Unidos, em US$/grama – 1990-2009
Fonte: UNODC (2010). Elaboração própria.
Parte desses aspectos sobre a formação de preços no mercado podem ser explicadas pela organização de facções criminosas (esse ponto é discutido nas falácias seguintes). Outra parte pode ser explicada pela alta lucratividade deste ramo e pelas vias de funcionamento deste mercado que se sustentam na corrupção de diferentes esferas da sociedade. Entretanto, esses fatores nem sempre são considerados, e as autoridades políticas insistem em culpar a existência da economia das drogas ao usuário. Isso nos remete à 2ª falácia:
FALÁCIA 2: “Quem usa droga financia o tráfico!”
O raciocínio que fundamenta esse argumento é basicamente aquele que defende que a demanda é responsável por gerar a oferta. Essa discussão é muito antiga na Ciência Econômica... e poderíamos discutir muito sobre isso... mas vamos evitar pensar no que surgiu primeiro – o ovo ou a galinha – e vamos pensar sob a perspectiva de mercados lícitos.
Muitas vezes um indivíduo sai e compra algum produto porque necessita daquilo. É o caso, por exemplo, de um consumidor que compra uma bebida porque precisa matar a sede ou um medicamento porque precisa se curar de alguma doença. No entanto, outras vezes um consumidor pode adquirir uma bebida porque quer experimentá-la ou um medicamento porque foi induzido a consumir por meio da publicidade – por exemplo, de uma pessoa que toma uma pastilha para obter mais energia.
O fato é que nem toda demanda por bens denota uma necessidade inerente ao consumidor, tendo em vista que eficientes estratégias de marketing e de difusão de mercados consumidores, relações sociais e estilos de vida configuram a criação de novas necessidades, particularmente pela indústria, influenciando plenamente na escolha do consumidor. Em outras palavras, “demandas” podem ser criadas pela “oferta”.
Obviamente, o mercado consumidor tem um potente papel em qualquer ramo. Por isso, a demanda vai, de fato, significar a receita final. Mas partir disso para afirmar que esta financia uma atividade produtiva é um erro grotesco. Afinal, nas diferentes etapas de produção, que podem vir da criação e da pesquisa e desenvolvimento de um produto até a elaboração, distribuição e venda dele, diferentes setores estão imbricados. Além disso, as estratégias adotadas por parte dos produtores tornam-se fundamentais na criação, distribuição, veiculação e consumo de mercadorias. No caso das drogas, não é diferente.
Ainda que o consumo de ervas e plantas psicoativas na sua forma natural sejam anteriores ao sistema de mercado, já que eram consumidas por populações primitivas em rituais sociais, medicinais ou sagrados, as principais drogas acabaram tomando uma dimensão mais mercantilizada a partir da sintetização dos compostos químicos. Esse foi o caso do surgimento da cocaína e da heroína, por exemplo, que eram comercializadas durante o Século XX pela indústria farmacêutica. Com a proibição dessas substâncias, bem como da Cannabis, consumidores continuaram experimentando e consumindo drogas para as mais diversas finalidades e, de fato, desempenham um papel fundamental neste mercado.
Todavia, não é para satisfazê-los que o tráfico se aprimora, se arrisca e se insere nessa economia. Narcotraficantes vendem drogas, sobretudo, porque dá lucro – e muito! Mesmo com preços decadentes nos últimos anos, os percentuais adicionados da etapa do atacado para o varejo são enormes. Com margens acima de 100%, mesmo frente à queda de preços, o mercado de drogas mostra-se muito lucrativo e, por essa razão, ele nunca vai acabar. O gráfico 3 exemplifica parte disso:
Gráfico 3 - Percentual adicionado no preço da heroína no varejo comparado com o preço de atacado, na Europa − 1990-2009
Fonte: UNODC (2011). Elaboração própria.
Para um debate mais aprofundado, poderíamos adentrar à questão do risco de vender drogas na formação do preço e descontar esse “fator” para identificar uma possível margem de lucro (que é diferente do “valor adicionado” exposto no gráfico 3). Contudo, sabe-se que a decisão de trabalhar na ilegalidade engloba inúmeros fatores que vão além da decisão econômica; perpassam pelo contexto. Na América Latina, pelas características próprias do subdesenvolvimento, não é de se estranhar a problematização de jovens de periferia envolvidos com o tráfico de drogas, por razões sociais, econômicas e culturais inerentes à desigualdade e à falta de oportunidades no mercado de trabalho. Tudo isso poderia desencadear outra discussão. Contudo, é fato que o narcotráfico não se inicia nem se financia pelo usuário. Esse argumento é uma falácia e funciona muito bem para culpar e até mesmo criminalizar usuários de drogas, particularmente quando a política persegue esses e nunca alcança nem descobre os verdadeiros “financiadores” da ilegalidade. Quando alcança os chefes do tráfico, dificilmente são percebidas mudanças no mercado. Falaremos disso na próxima falácia que é:
FALÁCIA 3: “Vamos desarticular o crime organizado, prendendo os chefes do narcotráfico!”
A lógica que sustenta essa ideia é apoiada numa grande verdade: na maioria das vezes, são presos os pequenos traficantes, ou seja, as pessoas que transportam pequenas quantidades de drogas em aeroportos (mulas) ou no asfalto (formiguinhas). Contudo, mesmo prendendo o chefe de uma biqueira ou de uma facção local, sabe-se que, em questão de tempo, outro traficante surge no lugar. Além disso, cada vez mais o crime organizado tem se estruturado em redes, melhorando a conectividade e a interação, adotando estratégias comuns de empresas formais, estruturando-se de tal forma que consegue reduzir custos e alavancar lucros, integrando-se com outros mercados ilícitos, como o tráfico de armas e de pessoas, bem como mercados lícitos, lavando dinheiro sujo e mascarando-se em outras empresas de fachada ou de setores estratégicos ao narconegócio (como na produção de substâncias químicas controladas necessárias à produção de drogas), ampliando a produtividade por meio de expansão vertical ou horizontal.
A estratégica gestão da economia das drogas abrange uma complexidade tamanha que é difícil descrever frente às divergências de mercados. Em estudo que comparou o mercado de Cannabis, Coca e derivados e ópio e derivados (SOUZA, 2015), notou-se que aspectos intrínsecos à concentração produtiva de determinadas substâncias seria crucial na dinâmica de preços e de venda no mundo. É o caso da cocaína que tendo 98% da produção mundial centrada em 3 países (Colômbia, Peru e Bolívia) apresenta estimativas de oferta e de mercado consumidor muito mais específicas e com preços que circulam sob a lógica de commodities. Isso não vale, por exemplo, para drogas como a maconha que, por ser produzida facilmente em todo mundo, inclusive pela viabilidade da produção “indoor”, sofre grandes variações de preços de acordo com a dinâmica de mercados locais e regionais.
Apesar da complexidade e das especificidades de cada tipo de psicoativo, uma característica apresenta-se decisiva ao narconegócio: a inovação. É, sobretudo, a capacidade de inovar e de adaptar-se frente às políticas de repressão a razão da sobrevivência e a condição de existência do atual mercado ilícito de drogas. Como bem iluminou Schumpeter, no sistema capitalista, há um processo de “destruição criadora”, pelo qual matérias-primas, produtos, processos de produção, máquinas, formas de consumo são permanentemente criados e destruídos. Isso é averiguado nas transformações globais de mercados formais, cuja capacidade de inovar associa-se à de crescer e de lucrar. No caso das drogas, a inovação tem um sentido que vai além da acumulação de capital: apresenta-se como condição de existência para a narcoindústria.
Por isso, novas drogas, novas rotas, novas formas de consumir e novas estratégia de se burlar o sistema, via adaptação e criatividade, justificam a existência e a sobrevivência da ilegalidade na Guerra às Drogas. A maior velocidade do crime frente a ação das políticas públicas somadas aos altos ganhos dessa economia explicam o cenário atual. Por essas razões, é possível compreender alguns aspectos do viés econômico que explicam por que a Guerra às Drogas é uma Guerra perdida... ou vencida, dependendo do ponto de vista de quem ganha com a proibição!
[1] Muitos argumentos podem ser esmiuçados no trabalho “A Economia das Drogas em uma abordagem heterodoxa”, onde é possível obter maior suporte de dados e explicações.
* Taciana Santos de Souza é economista, graduada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2011), mestre em Desenvolvimento Econômico (2015) pelo Instituto de Economia da Unicamp e doutoranda em Desenvolvimento Econômico na mesma instituição. Também é pesquisadora e co-fundadora do LEIPSI - Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos. Pesquisa sobre drogas desde de 2010 e usa a abordagem econômica heterodoxa em seus estudos.