Mauricio Fiore* [1]
February 12, 2020|Brasil, Política de drogas
Historicamente, o Estado brasileiro sempre esteve alinhado ao paradigma proibicionista. Mais do que isso, no caso da maconha, o Brasil contribuiu para que a radical proscrição fosse adotada globalmente, “denunciando” nos fóruns internacionais as consequências nefastas do uso da droga por meio de dados altamente questionáveis e encharcados de racismo.
A história do proibicionismo brasileiro deve ser compreendida junto das características estruturais do país: desigualdade extrema e violência. Assim, mesmo depois de mais de três décadas do fim da ditadura, a forma de enfrentamento à questão do uso de drogas potencializou essas duas permanentes estruturais brasileiras, agregando a ela duas novidades negativas: aumento vertiginoso do encarceramento e fomento do crime organizado em seu formato de grandes facções.
Muito mais poderia ser dito sobre essas questões, mas esse pequeno texto tem o objetivo menos ambicioso de apontar como, depois de um notável crescimento de fissuras na hegemonia do paradigma proibicionista nesse século, seus principais empreendedores reformularam e reforçaram, no Brasil, algumas linhas de argumentação com o objetivo de interditar um debate mais qualificado. Evidentemente, também escapa do escopo desse texto uma análise sistemática dos atores e de seus posicionamentos públicos. Há um ator político relevante, no entanto, que simboliza e exemplifica muito bem esse processo: Osmar Terra, médico e atual ministro da Cidadania. Desde que apresentou um projeto de lei para endurecer a então lei sobre drogas, em 2010 (lei que tinha, então, apenas quatro anos de vigência), o então médico e deputado federal Terra buscou vocalizar e atrair outros atores do campo proibicionista, ganhando força política. Já no governo de Michel Temer, embora não fosse da alçada de sua pasta, ele buscou protagonismo no tema e, com a vitória de Jair Bolsonaro, voltou a ocupar um ministério, dessa vez com mais poderes e com parte da estrutura governamental dedicada às drogas sob sua alçada. Mais detalhes sobre algumas de suas iniciativas podem ser lidos em outros textos do blog da Redesdal, como o de Thiago Rodrigues e o de Beatriz Brandão. Aqui, apresento algumas de suas estratégias argumentativas para, por meio da desqualificação do debate sobre política de drogas, promover um recrudescimento proibicionista no Brasil.
1. Estado e sociedade, uma confusão dolosa
O uso de psicoativas é um ato individual e social. Portanto, ele se insere em valores, estruturas e normas sociais do seu tempo. As formas de organização social e econômica têm direta relação com valores, normas, controles e moralidades que cercam o consumo de cada substância variam historicamente, mas sua existência é perenes. No entanto, a formação política principal da contemporaneidade, o Estado, se constitui de normas e de. controles formais. A maneira como o Estado se posiciona diante do fenômeno do uso de drogas é o que define a política de drogas. Por isso, o debate sobre política de drogas é fundamentalmente um debate sobre o papel do Estado nesse tema.
Uma característica do proibicionismo é eclipsar essa conclusão que é, aparentemente, óbvia. Isso porque sua base é a colonização do Estado por princípios morais que, ao menos na sua função manifesta, tem na proteção da sociedade a justificativa da prescrição radical de algumas drogas. A perspectiva que ele produz é o da dissolução dos diversos aspectos que envolvem a política de drogas em um debate sobre valores sociais mais amplos, porém mais simples. Desenha-se uma escolha binária, ser “contra” ou “a favor” das drogas e, a partir dela, um encadeamento de decisões políticas.
A confusão entre Estado e sociedade é uma maneira já tradicional de muitos atores políticos tornarem mais apelativas as suas preposições. Osmar Terra recorre permanentemente à divisão valorativa quando enfrenta as divergências de um debate: há quem goste das drogas, por interesse econômico ou moral, e há os que lutam contra. E, quando passou a ocupar posições no poder executivo, utilizou a estrutura de seu ministério para promover, por exemplo, “marchas da família contra as drogas” com o objetivo de interromper o julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre a criminalização do porte de drogas para uso pessoal, no que foi bem-sucedido. Mais recentemente, criou um “Fórum Permanente de Mobilização contra as Drogas”, formado por lideranças da sociedade civil alinhadas às suas perspectivas. Assim, Terra avançou um estágio na confusão dolosa que promove entre Estado e sociedade para recrudescer o proibicionismo.
2. A conspiração da indústria canábica
Não obstante se coloque como um lutador contra todas as drogas, a maconha é o grande inimigo a ser enfrentado pela guerra conclamada por Terra. O lobby em defesa da erva é a cabeça de ponte de uma rede conspiratória perigosa que congrega de banqueiros bilionários, entre os quais se destaca George Soros, a esquerdistas revolucionários que ameaçam os alicerces da família. Qualquer forma de discussão a respeito de maconha é parte do esforço por torna-la legal e matar a sede de lucro, sejam elas tão diversas como a regulamentação pelo uso medicinal da droga ou o encarceramento de jovens pobres e negros.
Se o tom conspiratório não é novidade na história da instituição do proibicionismo, a novidade que se apresenta em sua faceta contemporânea brasileira é o acoplamento à onda política “anti-sistema” de forma estigmatizar críticos do paradigma como representantes de poderosos interesses financeiros. O desejo de lucro, que obviamente movimenta empresas que já investem em mercados lícitos de maconha onde eles já são permitidos, é apresentado como e motivador de qualquer iniciativa social organizada para questionamento do atual modelo, ou mesmo da cobertura mais matizada do tema por veículos de imprensa.
3. A denúncia do viés ideológico (dos outros)
Uma das principais linhas argumentativas de Osmar Terra é a identificar vozes dissonantes como ideológicas. Importante lembrar que esse é um antigo recurso de interdição de debate sobre drogas, no qual um lado se coloca do lado das evidências científicas e imputa, ao outro, a motivação política, tida como impura. Além de reproduzir um superado ranço positivista, o objetivo mais óbvio é despolitizar o debate, promovendo a ilusão de que é possível discutir política de drogas sem discutir política. Esse é mais um exemplo em que o recrudescimento proibicionista busca surfar uma onda maior: no debate político brasileiro, ideologia se tornou uma espécie de xingamento no qual se retira do interlocutor a sustentação técnica e/ou a boa fé.
Concretamente, esse tipo de postura foi a justificativa para a tentativa de censura e, posteriormente, de descarte de uma pesquisa nacional sobre uso de drogas realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), uma centenária instituição pública brasileiras de pesquisa em saúde. Atribuindo um viés ideológico aos coordenadores da pesquisa, que teve uma amostra robusta e foi financiada pelo governo federal depois de um edital público para produzir os dados oficiais de prevalência de consumo de drogas, Terra conseguiu manter os resultados censurados até que jornalistas furaram o bloqueio, divulgando parte de seu conteúdo. Ainda assim, os dados do levantamento foram ignorados e, nesse momento, uma nova pesquisa está sendo contratada para substituí-la, depois de cinco anos.
Nenhuma justificativa técnica foi apresentada à comunidade acadêmica. Quando confrontado sobre o fato, a argumentação de Terra oscila entra o obscurantismo – uma pesquisa que não captou a “epidemia” de drogas que existe no Brasil não pode ter sido bem realizada – à denúncia do viés “pró-legalização” da Fiocruz, que, portanto, teria manipulado a pesquisa para seus propósitos políticos, embora não apresente como isso foi feito.
4. O silenciamento dos consensos possíveis
O Brasil, como outros países do mundo, teve uma notável diminuição da prevalência do consumo de tabaco nas últimas décadas. Parte importante dessa diminuição é atribuída às políticas de Estado, como tributação, proibição de publicidade, campanhas de informação, restrição de uso em locais públicos etc. Ainda que outros fatores sociais mais amplos devam ser considerados, foi um exemplo de política de drogas bem-sucedida sem a proibição (há uma questão importante com o enorme crescimento do contrabando que não pode ser ignorada). No entanto, os atores relevantes do proibicionismo brasileiro – representados por Terra – ou ignoram esse exemplo ou o apresentam como uma prova de que o caminho deve ser sempre o da restrição, nunca o contrário, ignorando a diferença entre regulamentação e liberação. E, claro, provocando confusão entre Estado e sociedade, como já dito anteriormente.
Se o tabaco poderia ajudar da produção de novos consensos em política de drogas, o caso do álcool é o seu oposto e desvela a falta de compromisso com uma política de drogas responsável. Isso porque, se a descriminalização e a regulamentação de drogas hoje ilícitas seguem muito controversas entre especialistas, há consenso acadêmico a respeito da lacuna de uma política para as bebidas alcóolicas, a começar pelas chamadas restrições ambientais, como os controles de ponto de venda e a restrição ou vedação de publicidade. Como pode, então, uma demanda consensual entre campos políticos de espectros diversos não ser canalizada para que mudanças efetivas ocorram? Para além do forte lobby das corporações interessadas, especialmente das grandes produtoras nacionais e do mercado de comunicação, há um forte temor de se implementar medidas antipáticas à normalização do álcool e dos hábitos em torno dele. A estratégia é concentrar a discussão exclusivamente nas drogas ilícitas, tornando-as grande vilãs e deixando como última prioridade o álcool, justamente a droga consumida por metade da população brasileira e que, do ponto de vista epidemiológico, a mais relacionada a danos diretos e indiretos.
Essas foram algumas das características das estratégias argumentativas do movimento de recrudescimento proibicionista brasileiro, do qual Osmar Terra pode ser apontado como maior expoente político. Importante dizer, para justamente não reforçar o maniqueísmo criticado nesse texto, que os críticos da política de drogas brasileira – o chamado campo antiproibicionista – também lançam mão de algumas estratégias discursivas similares àquelas levantadas aqui. Ponto importante que pode ser discutido oportunamente.
[1] Mauricio Fiore é pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e Editor da Platô: drogas e política, revista científica da Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas (PBPD). Mestre em Antropologia Social pela USP e doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, atua há duas décadas à pesquisa do uso e de políticas de drogas, sendo autor e organizador de vários trabalhos, entre os quais os livros “Uso de "drogas": controvérsias médicas e o debate público” e “Drogas e cultura: Novas Perspectivas”.