*Dayana Rosa
April 24, 2020|Consumo, Política de drogas
“Estamos vivendo uma pandemia”, decretou a Organização Mundial da Saúde (OMS) no dia 11 de março de 2020. Diante da tal situação - que nunca passou por minha cabeça vivenciar– vivemos à espera de respostas, uma vacina, uma modelagem epidemiológica, uma projeção e um gráfico com curva mais achatada. Também ficou mais evidente o movimento da sociedade científica em produzir análises de curto e médio prazo, uma expectativa produzida sobretudo como resposta em territórios em que a Ciência é descredibilizada em nome de outras prioridades, motivada por outros valores, como tem sido no Brasil de Jair Bolsonaro. Acontece que essa busca por contemplar o assunto da moda pode não convocar tanto as Ciências Humanas e Sociais quanto a Epidemiologia ou eventualmente a Política, Planejamento e Gestão da Saúde – as três grandes áreas da Saúde Coletiva brasileira. Digo isso correndo o risco de ser reprimida por colegas, mas, senão pelo meu campo de saber, irei eu me implicar enquanto pesquisadora de drogas e instituições e assumir: pode ser que eu não tenha nada a dizer sobre a Covid-19 nesse momento em que a cidade onde vivo completa mais de um mês de distanciamento social. E tudo bem. Até que eu me lembrei na Cloroquina.
A Cloroquina ganhou o debate público ao ser apresentada como tratamento para a Covid-19, sendo que o fármaco tem seu uso comprovadamente indicado para profilaxia e tratamento de ataque agudo de malária, sendo também indicada para lúpus e artrite[1]. Mas, para atribuir à Cloroquina uma nova indicação terapêutica é necessária a demonstração de segurança e eficácia por meio de estudos clínicos com número representativo de participantes. O uso compassivo (com compaixão) já vem sendo utilizado por um grupo de pessoas no Brasil, e em determinado momento vimos o desabastecimento nas farmácias, chegando ao ponto da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) classificar a Cloroquina como medicamento de controle especial, proibindo assim a sua exportação.
Acontece que a substância psicoativa ilícita mais consumida no mundo, a cannabis (cerca de 188 milhões de pessoas usaram essa droga em 2017[2]), também tem seu uso para fins medicinais defendido por pesquisadores, pacientes e seus familiares[3]. A cannabis vem sendo utilizada como medicamento há pelo menos 5000 anos, atingindo o ápice de seu uso médico no século XIX (ESCOHOTADO, 2008). Nas últimas décadas estudos comprovaram a eficácia da cannabis a partir de seu comportamento tipo antidepressivo[4], para tratamento do transtorno bipolar[5], esclerose múltipla[6], sem falar na descoberta de um sistema endocanabinoide no cérebro humano. O medicamento já é registrado em vários países, como nos EUA (Marinol®) – país que proibiu a substância em 1937, como forma de perseguir imigrantes mexicanos e latinos.
Mas nosso foco aqui não serão as doenças que a Cloroquina e a cannabis podem tratar. Nosso objetivo é mapear os argumentos relativos ao uso de Cloroquina e cannabis, utilizando uma metodologia mista de inquietação antiproibicionista na quarentena com considerável acúmulo em estudos sobre a gestão das drogas, trazendo a perspectiva de sua politização enquanto processo (ELIAS, 2001)[7]- ou seja, substâncias que são tornadas legais ou não para determinados fins - e que são empreendidas moralmente (BECKER, 2008)[8]pela sociedade civil, agências de regulação, indústria farmacêutica e Estados.
A politização das substâncias: uma é da direita, a outra é da esquerda?
O fato é que estamos todos em busca de uma cura. Na sociedade civil, as associações de familiares de pacientes de canabis medicinal se multiplicam e ganham força. Da mesma forma, alguns familiares de pessoas testadas positivas para a Covid-19, e elas mesmas, ecoam manifestações em favor do uso individual independente de comprovação de segurança e eficácia.
Nas últimas semanas, as postagens do presidente sobre a Cloroquina eram quase diárias, o que incluía até a exibição das marcas de remédio comercializados no Brasil. A intensa publicidade levou o remédio a desaparecer das prateleiras das farmácias. Até a indústria farmacêutica, que vinha se beneficiando da alta nas vendas, se queixou da atitude de Bolsonaro devido ao desabastecimento em algumas cidades do país. “Nós sempre fomos contra a prescrição off label [9]de médicos, imagine de alguém que não é médico”, disse um empresário influente do setor, que não quis se identificar em entrevista concedida à Veja[10]intitulada “A ascensão e a queda do remédio que iria nos salvar da crise”. Segundo os dados do segmento, foram vendidas ao todo 974.669 frascos de cloroquina e hidroxicloroquina no país nos últimos doze meses até fevereiro – desse total, a maioria (933.911) foi produzida pela fabricante brasileira Apsen, cujo remédio (o Reuquimol) chegou a ser exibido pelo presidente em uma de suas livesnas redes sociais.
“Temos mais boas notícias. Fruto de minha conversa direta com o primeiro-ministro da Índia, receberemos, até sábado, matéria-prima para continuarmos produzindo a hidroxicloriquina, de modo a podermos tratar pacientes da covid-19, bem como malária, lúpus e artrite”, disse o presidente.
E por falar em economia, um relatório publicado pelo Banco de Montreal, instituição mais antiga no Canadá, chegou à conclusão de que o potencial da cannabis é tão grande que poderia elevar "o nível do céu". O mercado global de cannabis movimentou no ano passado US$ 18 bilhões. Segundo o levantamento do Banco de Montreal, ele chegará a US$ 194 bilhões até 2026. Isso se o número de países que regularem o uso medicinal e recreativo da cannabis não aumentar mais do que o previsto.
No episódio do ataque aos pesquisadores do projeto CloroCovid-19[11], Eduardo Bolsonaro (PSL), filho do presidente, divulgou ataques aos pesquisadores no Twitter: “O estudo clínico realizado em Manaus para desqualificar a cloroquina causou 11 mortes após pacientes receberem doses muito fora do padrão. Este absurdo deve ser investigado imediatamente. [...]os responsáveis são do PT. Mas que isso é pura coincidência”.
A bandeira da regulamentação da cannabis para fins medicinais pode ser do interesse para os defensores da legalização como um todo, oferecendo uma estratégia que mobiliza e sensibiliza a opinião pública quando o argumento é a longevidade e qualidade de vida de crianças que sofrem com epilepsia, por exemplo. E as pessoas que defendem a cloroquina para o tratamento da Covid-19, estão interessadas em quê? Em uma cura, assim como as famílias dessas crianças. Mas o presidente da república, enquanto autoridade política máxima do país, se aproveita do desespero coletivo para fortalecer uma moralidade individualista e alcançar visibilidade midiática, sustentando sua popularidade.
Não foi sem disputa (ideológica também, claro), que países começaram a regular o uso médico da cannabis - e não pense que isso é um privilégio da esquerda. Julio Delmanto, em “Camaradas Caretas”[12], fez um excelente compilado que demonstra o quanto a esquerda pode não ser tão a favor assim de pautas como a regulação das drogas. A começar por Lênin e a afirmação de que a religião é o ópio do povo. Fernando Gabeira (PV): “não sei se a esquerda brasileira refletiu sobre a política de drogas, se ela conseguiu encarar as drogas de uma forma que não fosse a inversão simétrica de repressão da direita”. Perseu Abramo (PT): “[...] fuga pelas drogas. Temos claro que seu consumo representa menos uma necessidade para movimentos de massas do que o resultado, para a juventude, da crise econômica e social do regime”. Dilma Rousseff foi abertamente proibicionista. O PSOL, por sua vez, carrega as contradições de ter tido em seu time Ivan Valente e Heloísa Helena com falas semelhantes às do saudoso companheiro Plínio de Arruda Sampaio: “há drogas e drogas”. Mas também teve Jean Wyllys (exilado político), que compreendeu a necessidade de regulamentar a produção, a industrialização e a comercialização de cannabis e seus derivados, transformando esse acúmulo em Projeto de Lei.
In the Sciences we trust
Busquei humildemente oferecer, enquanto pesquisadora das Ciências Humanas e Sociais em Saúde, mais perguntas do que respostas. Revisitando o filme Clube de Compras Dallas- que mostra como os primeiros remédios autorizados para o tratamento de HIV/Aids pioravam o quadro de saúde dos infectados - foi inevitável pensar nas aproximações e distanciamentos entre várias substâncias. A fluidez entre o uso médico e outros tantos infinitamente possíveis, e a busca pela extensão e/ou intensidade (VARGAS, 2001)[13], nos obriga a pensar sobre qual ciência tem legitimidade para determinar quem vive e quem morre, e se há de fato esse poder.
A Biopolítica (FOUCAULT, 2004)[14]e a Necropolítica (MBEMBE, 2018)[15]estão presentes nesse debate em que há a desconfiança na cautela científica em buscar a comprovação da eficácia e segurança suficientes para um novo tratamento, mas que por vezes se depara com experiências da sabedoria popular, ancestral, oriental, etc. (sinceramente, não sei dizer como o chá de boldo passou a ser recomendado). Há também “a ciência ainda não comprovou por completo”. Aparentemente, o que balizará os critérios de comprovação a partir dessa ciência, biomédica, será o risco. Mas o risco não necessariamente é “científico”, não é à toa que existe o conceito de percepções de risco.
Politizam-se as substâncias, mas porque não politizar a Ciência? A começar por trazer a pluralidade. Ciências! O proibicionismo é um fenômeno que não está relacionado somente à proibição das drogas, mas a reflexões e comportamentos que dizem respeito a qualquer área. Politizar as ciências numa perspectiva antiproibicionista significa nos posicionarmos em favor das diversidades de possibilidades, do direito ao gerenciamento dos riscos de consumo de qualquer substância e do acesso às informações para uso responsável e de acesso universal à saúde pública.
[1] FIOCRUZ. Protocolo de uso da cloroquina. 2017. Disponível em: https://www.far.fiocruz.br/wp-content/uploads/2017/02/Cloroquina-ProfSaude.pdf
[2] ONU. World Drug Report, 2019. Disponível em: https://wdr.unodc.org/wdr2019/
[3] Obrigada, companheiro Rodrigo Velloso, pela provocação, e Denis Petuco, pela escuta e diálogo.
[4] Bambico FR, Katz N, Debonnel G, Gobbi G. Cannabinoids elicit antidepressant-like behavior and activate serotonergic neurons through the medial prefrontal cortex. 2007. Disponível em: https://europepmc.org/article/PMC/6673235
[5] Ashton CH, Moore PB, Gallagher P, Young AH. Cannabinoids in bipolar affective disorder: a review and discussion of their therapeutic potential. 2005. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/15888515
[6] Consroe P, Musty R, Rein J, Tillery W, Pertwee R. The Perceived Effects of Smoked Cannabis on Patients with Multiple Sclerosis. 1997. Disponível em: https://www.karger.com/Article/Abstract/112901
[7] Em “O Processo Civilizador II”.
[8] Em “Outsiders – Estudo sociológico sobre o desvio”.
[9] Para haver um uso off label é necessária que a substância em questão já esteja registrada como medicamento para algum fim quaisquer que seja, uma vez que o uso off label se refere ao consumo de medicamentos que não seguem as indicações homologadas para aquele fármaco. Pois, quando um medicamento é aprovado para uma determinada indicação isso não implica que esta seja a única possível, e que o medicamento só possa ser usado para ela
[10] VEJA. Cloroquina: a ascensão e queda do remédio que iria nos salvar da crise. 2020. Disponível em: https://veja.abril.com.br/politica/cloroquina-a-ascensao-e-queda-do-remedio-que-iria-nos-salvar-da-crise/
[11] ABRASCO. Em respeito à ciência! Contra os ataques aos pesquisadores do estudo CloroCovid-19. 2020. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/outras-noticias/notas-oficiais-abrasco/em-respeito-a-ciencia-contra-os-ataques-aos-pesquisadores-do-estudo-clorocovid-19/47055/
[12] DELMANTO, J. Camaradas caretas: drogas e esquerda no Brasil após 1961. 2013. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-29052013-102255/pt-br.php
[13] Em “Entre a extensão e a intensidade: corporalidade, subjetivação e uso de drogas”
[14] Em “O Nascimento da Biopolítica”.
[15] Em “Crítica da Razão Negra”.
*Dayana Rosa: Mestre e doutoranda em Saúde Coletiva pelo Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, na área de concentração de Ciências Humanas e Saúde. Concluiu a graduação em Administração Pública na Universidade Federal Fluminense (2014). Atua principalmente na área de Antropologia do Estado com o tema de instituições e políticas sobre drogas. Acumula experiência profissional nos três poderes: foi assessora legislativa coordenando a Frente em Defesa da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial; foi assessora técnica do Ministério da Saúde no eixo de violência e vulnerabilidades da Coordenação-Geral de Saúde das Mulheres, e foi consultora do Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crimes (UNODC) em audiências de custódia no programa Justiça Presente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Atualmente é secretária executiva adjunta da Associação Brasileira de Saúde Coletiva - ABRASCO"