Roberto Pires y María Paula Santos*
April 7, 2021|Brasil, Consumo, Desafios e possibilidades emergentes
Fotografía tomada por los autores
Introdução
Nas últimas décadas, novas abordagens aos usos problemáticos de álcool e outras drogas emergiram em vários países da América Latina, como alternativas aos antigos métodos terapêuticos fundados em internações e voltados prioritariamente à promoção da abstinência de substâncias. Oferecendo tratamentos em liberdade, orientados pela lógica da redução de danos, estas abordagens refletem o crescente reconhecimento, na região, dos direitos fundamentais das pessoas afetadas por estes usos - especialmente daquelas em situação de grande vulnerabilidade social.
Mirando além dos transtornos associados aos consumos problemáticos de substancias, estas experiências estabelecem como meta primordial a atenção às múltiplas e diversas necessidades psicossociais de sua clientela, buscando ampliar seu acesso a bens e serviços, e promover sua melhor inserção social e comunitária.
Dados estes objetivos - que acrescentam grande complexidade à já bastante desafiadora tarefa de enfrentar a problemática das drogas – estas experiências, por si só, suscitam o interesse do analista de políticas públicas sobre seus processos de implementação e resultados. Mas, para além disso, a análise comparativa de diferentes casos nacionais inspira o debate e convoca ao adensamento da reflexão sobre políticas públicas dirigidas a uma clientela marcada pelo acúmulo de desvantagens sociais e, frequentemente, tratada de modo indiferente, se não violento, pelos Estados.
Estas foram as motivações que orientaram a realização do projeto cujos resultados serão aqui sintetizados. Fruto da parceria entre a Comissão Econômica para América Latina (CEPAL) e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), este projeto envolveu a realização de pesquisas empíricas sobre serviços assistenciais a usuários de drogas em cinco países latino-americanos – Argentina, Brasil, Colômbia, México e Uruguai – realizadas por pesquisadores neles residentes[1]. O conjunto completo dos resultados serão apresentados sob a forma de um livro[2], que compila informações sobre o estado da arte das políticas e programas de assistência a usuários de drogas, em cada contexto nacional, além de descrições e análises de programas específicos. Compõem ainda o volume: um capítulo introdutório; um capítulo sobre a evolução das políticas de regulação sobre drogas nos países estudados; e um capítulo final, que sistematiza a reflexão coletiva entre os autores, por meio de comparações entre as diferentes experiências nacionais.
Fotografía tomada por los autores
Casos analisados
As pesquisas empíricas, realizadas por meio de metodologia etnográfica, focalizaram alguns serviços de atenção a usuários de drogas representativos dos novos modelos de cuidado que se disseminam na região. Para a Argentina, foram abordados o Dispositivo Integral de Abordaje Territorial(DIAT) e o Dispositivo de Tratamiento Comunitario (DTC), de duas localidades situadas na região metropolitana de Buenos Aires. No Brasil, analisaram-se os Centros de Atenção Psicossocial para Álcool e outras Drogas (CAPS AD) presentes no Distrito Federal do país (DF). Na Colômbia, a pesquisa teve por objeto os Centros de Escucha de Cáli e Bogotá. No México, analisou-se a experiência dos Centros de Atención Primaria a las Adicciones (CAPA), localizados na província de San Luis Potosí; e no Uruguai, o Achique de Casavalle, situado na zona norte de Montevideo (Uruguai)
Diferenças entre arranjos institucionais de implementação
Os casos brasileiro e mexicano são representativos de reformas conduzidas no interior dos sistemas de saúde de cada país, voltados à ampliação da oferta de serviços ambulatoriais, em contraposição às internações hospitalares de longo prazo. Argentina, Colômbia e Uruguai, por sua vez, exemplificam a modalidade de oferta de cuidado por meio de dispositivos menos ancorados nos sistemas de saúde e mais voltados à ativação de redes comunitárias nos seus respectivos territórios, sob a liderança de organizações não governamentais (ainda que com financiamento público).
Semelhanças: atenção psicossocial, integral, de base territorial e comunitária
Em todos esses países, durante quase todo o século XX, a oferta de cuidados a usuários de drogas se restringia a abordagens médicas centradas em instituições hospitalares, ou à ação de grupos de ajuda mútua e de organizações filantrópicas e religiosas, todos voltados à promoção da abstinência de substâncias. Foi apenas na virada para o século XXI que se disseminaram serviços ambulatoriais e dispositivos de base comunitária, articulados em redes de atenção intersetoriais, integradas e territoriais. Nesses novos dispositivos, o foco exclusivo na abstinência cedeu espaço a outras possibilidades de se compreender o uso de drogas e as relações, nem sempre problemáticas, entre os sujeitos e estas substâncias.
Todas as experiências analisadas têm em comum:
· Acessibilidade ampliada
· Garantia ou restituição de direitos
· Integralidade do cuidado por meio de redes
· Pluralidade das bases de conhecimento mobilizadas para o cuidado
· Foco na singularidade dos sujeitos tratados
· Novos sentidos atribuídos à efetividade do cuidado
Precariedades, tensões e desafios na implementação das novas modalidades de cuidado
Apesar destes aspectos em comum apontarem para uma mudança paradigmática das práticas de cuidado a usuários de drogas, os estudos de caso revelam que a escala de sua implementação ainda é reduzida, nos diferentes países. Além disso, todas as experiências analisadas se defrontam ainda com a resiliência de modelos assistenciais tradicionais, com os quais interagem de formas, a um só tempo, cooperativas e conflitivas.
A cooperação ocorre ao nível macro, na composição das políticas nacionais e na articulação dos sistemas, redes e esquemas de financiamento e regulação adotados pelos Estados. No nível micro, as conexões aparecem nos esforços de tessitura de redes de instituições e serviços públicos presentes nos territórios, acionadas para a promoção do acesso da clientela a direitos e a novas oportunidades de (re)inserção social e comunitária.
Já a dimensão do conflito se manifesta nas tensões relacionais que emergem das próprias iniciativas de articulação dessas redes, que se agrava em função da precariedade material que ronda os serviços, e pela dissonância entre concepções e metodologias de trabalho dos diferentes parceiros. Tais tensões não apenas tornam os esforços de produção e manutenção de redes ainda mais hercúleo, mas também introduzem riscos de desatenção e exclusão de segmentos que já vivem em condições de maior vulnerabilidade.
Em todos os casos, observaram-se os seguintes desafios:
· Precariedades materiais dos serviços
· tensões relacionais entre parceiros das redes
· barreiras de acesso impostas aos grupos mais vulneráveis da clientela destes serviços
A superação destes desafios é condição necessária à expansão e consolidação de políticas voltadas aos usos problemáticos de drogas compromissadas com a garantia de direitos fundamentais e com o combate à exclusão social - tarefas tão urgentes na região.
A contribuição das experiências analisadas para a ressignificação do uso de drogas no imaginário das sociedades contemporâneas é inegável. Porém, sua consolidação depende de maiores investimentos dos Estados e das sociedades, que permitam não só a superação de sua precariedade material, mas o processamento mais adequado das tensões relacionais e o desmantelamento das barreiras de acesso aos segmentos mais vulnerabilizados.
[1] Respectivamente, Florencia Corbelle, Maria Paula Santos, Roberto Pires, Andres Gongora, Angélica Ospina-Escobar e Clara Musto.
[2] Pires, R.; Santos, M.P. (Orgs.) Alternativas de cuidado a usuários de drogas na América Latina: desafios e possibilidades de ação pública. Brasília: IPEA / CEPAL, a ser lançado em 2021.
*Roberto Rocha C. Pires - Doutor em políticas públicas pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), mestre em ciência política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e graduado em administração pública pela Fundação João Pinheiro (FJP). É pesquisador de carreira na Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia (Diest) do Ipea desde 2009, professor do Mestrado Profissional em Políticas Públicas e Desenvolvimento nesse instituto e professor do Mestrado Profissional em Governança e Desenvolvimento na Escola Nacional de Administração Pública (Enap).
*Maria Paula Gomes dos Santos - Técnica de planejamento e pesquisa na Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia (Diest) do Ipea. Mestre em políticas públicas e administração pública pelo Instituto de Ciências Sociais (ISS – em inglês, Institute of Social Studies), dos Países Baixos (Holanda). Doutora em ciência política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). Desenvolve pesquisas a respeito de políticas sociais e políticas de cuidado a usuários de drogas. Organizou o livro Comunidades Terapêuticas: temas para reflexão, publicado pelo Ipea em 2018.