Dayana Rosa Duarte*
November 8, 2019|Brasil, Política de drogas, Reducción de daños
Ilustração “Na Corda Bamba”, de Madalena Matoso.
“Em tempos de radicalização da violação de direitos e ameaça à democracia, é preciso defender a radicalidade da potência do cuidado” [1]. Essa é uma das sínteses da Carta de Manguinhos, documento produzido no Seminário Internacional Cenários da Redução de Danos na América Latina, realizado em 2017 na Fiocruz - Rio de Janeiro, que contou com a participação de 7 países do continente.
O conceito e a prática da Redução de Danos (RD) tem sido cada vez mais ampliado, sendo comum ouvirmos o termo em outras áreas ou até em conversas informais com amigos envolvidos em outros temas que não o das drogas. A Carta de Manguinhos é expressão disso, identificando na RD latinoamericana o foco na desigualdade social e, ao fazer isso, propõe a ética do cuidado enquanto ferramenta de democratização. Reduzir danos é promover a democracia.
A RD foi adotada pela primeira vez no Brasil, em 24 de novembro de 1989, na cidade de Santos, em São Paulo. Na ocasião, o governo municipal anunciou a primeira ação de RD no Brasil. Essa ação envolvia a estratégia de troca e distribuição de seringas entre usuários de drogas injetáveis com o objetivo de conter a contaminação de HIV entre usuários de drogas injetáveis na cidade.
Com a (in)visibilidade do consumo de crack nos anos 2000, as políticas de drogas foram desafiadas a se moldar de acordo com um aspecto diferente daquele encontrado em Santos anos atrás, com um processo mais profundo de vulnerabilização de pessoas, muitas vezes através da atuação do Estado. A partir dessa gentrificação, foram muitas as ações de repressão, como por exemplo as internações compulsórias, principalmente no Rio de Janeiro, no contexto da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos.
Na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ), em 2015, foi instalada a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar as causas e consequências do consumo de crack no estado, a “CPI do Crack” [2]. Mesmo que a principal recomendação do relatório final tenha sido a prevenção e o combate à miséria, o termo “redução de danos” foi censurado dos documentos, atendendo a solicitação do presidente da Comissão ao assessor do relator responsável.
Um silêncio semelhante acontece há anos no cenário internacional, na Organização das Nações Unidas (ONU): nem na Sessão Especial da Assembleia Geral (UNGASS) sobre Drogas, em 2016, nem na Comissão de Drogas Narcóticas (CND), de 2019, que teve como objetivo avaliar os últimos 10 anos de política de drogas e planejar a próxima década, foi incluso o termo “redução de danos” - ao contrário do que acontece na Organização Mundial de Saúde (OMS), que desde 1994, a partir de uma provocação do México, sugere à CND que se oriente através da RD.
A RD é silenciada nas instituições e, quando evidenciada, enfrenta embates cotidianos na arena burocrática. Durante o governo do Partido dos Trabalhadores (PT) houve muitas contradições, que se verificaram também na área das drogas. Com o golpe, a jovem democracia brasileira foi fortemente atacada e seus impactos foram visíveis nas políticas de direitos humanos. O governo de Jair Messias Bolsonaro demonstrou compromisso com o proibicionismo, agindo de acordo com a moral religiosa e apoiando as comunidades terapêuticas, hospitais psiquiátricos, indústria farmacêutica e do armamento. Além disso, o Conselho Nacional de Política sobre Drogas (CONAD), principal braço institucional de controle social, foi esvaziado também no primeiro ano de governo Bolsonaro.
“É o fim da redução de danos”, muitos pensaram quando foi decretada pelo presidente a Política Nacional de Drogas - idealizada pelo ministro Osmar Terra, que é empreendedor moral junto a outros como Quirino Cordeiro e Sérgio Moro, além do bispo Marcelo Crivela e Witzel no Rio de Janeiro, por exemplo. O prefeito carioca realizou a semana Rio sem Drogas, para anunciar o programa Um Novo Caminho, pautado na estratégia de abstinência e no fortalecimento das comunidades terapêuticas. Já o governador, seguindo o rumo de seus antecessores, declarou guerra civil-militar aos pobres sob a justificativa de trazer segurança ao estado.
Mas não era o fim da Redução de Danos. Não porque o decreto de Bolsonaro cita a RD uma vez, mas porque não são atos normativos, sozinhos, que destroem ou constroem práticas e mudam culturas. A culturada redução de danos é maior que qualquer lei, portaria, decreto ou ofício. Os últimos trinta anos da RD no Brasil provaram a capacidade de continuidade dessa prática que de tornou Política, porque é baseada em evidências e em princípios fundamentais como o respeito à liberdade e à autonomia dos usuários.
Foram possíveis experiências exitosas em diversas cidades do país, como o recente De Braços Abertos (São Paulo), Atitude (Recife) e Corra pro Abraço (Salvador). No terceiro setor, ONGs brasileiras que se mobilizam em torno do tema das drogas se multiplicaram a partir da criação da REDUC e ABORDA, as quais destacamos a Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD), Redes da Maré, Centro de Convivência É de Lei, Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas (INNPD), Rede Nacional de Feministas Antiproibicioisas (RENFA), etc., além de movimentos sociais como Movimento Nacional pela Legalização da Maconha e o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial - sem falar nos grupos de pesquisa e extensão nas universidades, dos profissionais de saúde e assistência social, e os próprios redutores de danos. Frentes Parlamentares simpáticas à causa foram criadas, e hoje é possível notar a formação de um grupo, ainda que pequeno, de parlamentares que se posicionam em defesa da RD e atuam para tal.
É possível concluir que há resistência e há capilaridade suficiente para manutenção da RD no Brasil. Por mais que a democracia brasileira esteja fragilizada, há potência na rede existente. Uma articulação atenta à participação social, por exemplo, resgatando o papel que tiveram as conferências municipais sobre drogas, um olhar voltado à base, é a saída não só para manutenção da RD, mas para a construção de precedentes para exercício efetivo da cidadania dos usuários e trabalhadores, ocupando o controle social. Uma cidadania popular e deliberativa.
Uma agenda para a RD brasileira, se assumindo latinoamericana, precisa incorporar e aprofundar debates como o desenvolvimento alternativo, onde regiões envolvidas com o plantio de ilícitos - caso do Vale do São Francisco, entre Pernambuco e Bahia - poderiam explorar commodities valorizadas, estabelecendo círculos virtuosos de crescimento social e econômico. Além disto, a perspectiva do desenvolvimento alternativo pode ser adaptada à realidade de territórios vulneráveis em meio urbano.
A construção de um consenso mínimo sobre a legalização das drogas não pode ser uma utopia. Para isso, desafios relacionados principalmente à segurança pública, como o superencarceramento e superlotação das prisões, precisam ser superados urgentemente. Reduzir os danos do proibicionismo inclui estratégias de gênero, raça e classe, com vistas a fortalecer a emancipação de mulheres, negros e negras, e pobres.
A Carta de Manguinhos foi produzida em 2017. Dois anos depois, a América Latina se levanta em defesa da democracia, e torcemos cotidianamente para que este levante ultrapasse as fronteiras brasileiras. “Por um mundo onde caibam vários mundos” foi a frase que encerrou a Quarta Declaração da Selva Lacandona, do povo zapatista, direcionada ao povo do México e aos povos e governos do mundo. Se, na Declaração Política e Plano de Ação de 2009, na ONU, a Redução de Danos foi identificada pelos países proibicionistas como “Cavalo de Troia” para tentativas futuras de legalização de substâncias hoje proibidas, hoje é possível afirmar que estavam certos: a RD está viva, em todos os lugares, defendendo até o fim o direito de existir diferentes modos de vida. Defendendo a democracia.
[1] Carta de Manguinhos, 2017. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/wp-content/uploads/2017/06/CARTA-DE-MANGUINHOS_Final_Revisado_02junho2017.pdf
[2] CPI do Crack: uma etnografia acerca do problema das "drogas" com parlamentares, 2015. Disponível em: https://www.academia.edu/34268713/CPI_do_Crack_uma_etnografia_acerca_do_problema_das_drogas_com_parlamentares
*Dayana Rosa Duarte é Doutoranda e mestre em Saúde Coletiva pelo Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, na área de concentração de Ciências Humanas e Saúde. Concluiu a graduação em Administração Pública na Universidade Federal Fluminense (2014). Atua principalmente na área de Antropologia do Estado com o tema de instituições e políticas sobre drogas. Acumula experiência profissional nos três poderes: foi assessora legislativa coordenando a Frente em Defesa da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial; foi assessora técnica do Ministerio da Saúde no eixo de violência e vulnerabilidades da Coordenação-Geral de Saúde das Mulheres, e atualmente é contratada pelo Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crimes (UNODC) como consultora em audiências de custódia no programa Justiça Presente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).