Jonatas Carvalho*
April 1, 2020|Brasil, Cocaína, Consumo, Política de drogas
Após o fim da Segunda Grande Guerra Mundial, o recém criado órgão multilateral, a Organização das Nações Unidas, substituto da extinta Ligas das Nações, passou a se reunir com periodicidade. Havia muito a fazer, dentre as atividades do novo organismo estava a retomada das pautas interrompidas com a eclosão da guerra. Em 1947, a Commission on Narcotc Drugs,[1] vinculada ao Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC), se reuniu com o objetivo de reavaliar a política internacional de regulação de drogas. Era necessário verificar os níveis de consumo mundial das substâncias reguladas, comparar com os níveis de consumo anteriores à guerra e ampliar o controle das exportações e importações.
A reunião de 1947 tratava, dentre outras questões, sobre a preparação de uma conferência internacional para considerar a possibilidade de limitar e controlar o cultivo e a colheita da folha de coca. A planta da família erythroxylum, passou a ser regulada de modo global a partir da Convenção de Genebra em 1925. A Conferência de Genebra de 1931, tratou de ampliar os mecanismos de controle, os signatários não podiam mais possuir estoques da matéria prima (folha de coca). Em 1932, o Comitê Central Permanente do Ópio, chegara a conclusão que a questão do ópio era mais urgente e necessária, por outro lado, acreditavam ser “improvável que o controle do cultivo e da colheita da folha de coca se tornem aplicáveis em um futuro próximo, devido às circunstâncias especiais relacionadas à sua produção”.
As “circunstâncias especiais” e “o problema do controle das folhas de coca”, na verdade significava que o órgão não tinha a mínima ideia dos volumes de plantio e produção na América, em especial no Peru e Bolívia. Entre os anos de 1932 e 1942, o Peru havia enviado para o Comitê apenas uma estatística, a de 1938. A Bolívia, maior produtora mundial na época correspondendo a 50% da produção mundial, havia enviado estatísticas dos anos de 1932 e 1933. Nos anos de 1940 uma espécie de subcomissão é criada dentro do Comitê para tentar tratar desse caso específico, cujos relatórios produzidos ao longo de anos teve como título: The Coca Leaf Problem.
Foi em abril de 1948 que a chamada La Misión de Expertos, fez uma viagem de inspeção no Peru e Bolívia, os objetivos dos Expertos era determinar: os efeitos nocivos ou não do hábito de mascar coca, sobre o organismo humano ou sobre algum órgão em particular; os fatores, motivos (clima, altitude, regime alimentar, herança, tradição), que induzem ao hábito; as consequências sociais e econômicas do hábito; as medidas a serem adotadas para a fim de suprimir tal hábito na população interessada. Ao regressarem da expedição nos Andes, os membros da Misión se debruçaram na produção de um relatório final, que foi extenso e repleto de recomendações. O Informe de La Comisión de Estudio de Las Hoja de Coca[2]produzido em 1950, traz no primeiro momento uma história da formação da própria Misión, detalhamento das reuniões prévias, burocracia, orçamento, em um segundo momento descreve o método de trabalho, terminando com uma espécie da análise antropológica da cultura andina, costumes, práticas do “índio” do Peru e da Bolívia. Ao fim, concluiu-se que a mastigação da folha de coca não constituiria uma toxicomania, mas sim, um hábito. Não havia dúvidas que qualquer indivíduo poderia abandonar a mastigação sem quaisquer consequências como qualquer outro hábito. Não obstante, a Mision, recomendou a manutenção da folha de coca ao controle mundial de entorpecentes por duas causas: 1) porque os efeitos causados nos indivíduos pelo hábito da mastigação se explicam pela ação da cocaína; 2) embora trate-se de um hábito e não de vício, a mastigação da folha de coca é prejudicial por: a) ao inibir a sensação de fome, cria um ciclo vicioso e por conseguinte gera um estado de desnutrição; b) implicam modificações desfavoráveis de natureza intelectual e moral (p.99).
O protagonismo brasileiro. as Reuniões Interamericanas no Rio de Janeiro.
O Brasil foi o primeiro país da América do Sul a criar um órgão centralizador de políticas públicas de drogas. A Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes (CNFE), emerge no país em meados de 1936 dentro do ministério das relações exteriores. Tratava-se de início de um órgão consultivo e deliberativo no que dizia respeito à questão dos entorpecentes, na prática, a CNFE foi responsável por aplicar em âmbito doméstico as resoluções adotadas no Comitê Central do Ópio. A Comissão elaborou o novo marco regulatório brasileiro já em tempos de Estado Novo, o Decreto-Lei nº981/1938, contribuiu com a matéria no texto do Código Penal em 1940 (art.281) e participou dos debates da Convenção Única de 1961, colaborando com o Decreto nº54.216/1964, em plena ditadura militar. A Comissão teve sua estrutura desmontada apenas em 1976 por conta de criação de um novo modelo de políticas de drogas no país.[3]
O pioneirismo brasileiro em política de drogas na América do Sul, no que se refere a criação de uma agência nacional fez com que a CNFE atribuísse a si mesma uma imagem de referência continental. Rosa Del Olmo em 1988[4], revelava que estruturas de caráter nacional na América Latina só teriam se organizado na década de 1970, enquanto que na década de 1940 a CNFE já fazia excursões na Argentina Paraguai e Uruguai, esses “voos” para além das fronteiras nacionais, tinham por objetivo propagar o caráter precursor da política de drogas brasileira e de suas leis avançadas. Ao demonstrar uma certa liderança continental, o governo brasileiro trabalhava para obter reconhecimento do organismo multilateral, reconhecimento este por sinal expressado várias vezes, mas que nunca resultou o que o governo brasileiro realmente desejava; um assento permanente.
Foi com o mesmo intuito que nos idos de 1959, que o embaixador Régis Bittencourt, articulou junto ao EUA e a a Commission on Narcotc Drugs, a realização da I Reunião Interamericana Sobre o Tráfico Ilícito de Cocaína e Folhas de Coca, no Rio de Janeiro entre os dias 21 e 25 de março de 1960. A reunião contou a participação da Argentina, Bolívia, Colômbia, Cuba, Chile, Equador, Paraguai, Peru, participaram ainda representantes dos EUA, México, Venezuela e da Interpol. O governo brasileiro mais uma vez demostrava sua liderança continental ao criar as condições para resolver um problema que se arrastava há anos.
O encontro resultou em uma ata final constando um conjunto de proposições distribuídos em quatro resoluções. A resolução 1, composta por nove recomendações tratou do “aperfeiçoamento das leis nacionais” o objetivo era fazer com que todos os países americanos adequassem seu sistema jurídico às convenções internacionais. Na resolução 2, um total de treze recomendações procurou tratar do controle do tráfico no âmbito continental, medidas como treinamentos e cursos oferecidos as equipes policiais de modo a padronizar a atuação nos países americanos. A resolução 3 pedia que os Estados ali representados tornassem membros da Organização Internacional de Polícia Criminal (INTERPOL), permitindo assim que o organismo centralizasse as informações sobre o tráfico de cocaína refinada e as fizesse circular entre os países-membros. A resolução de número 4, composta de uma série de recomendações que visavam o aperfeiçoamento dos aparelhos de controle e fiscalização no âmbito doméstico e aconselhava que os Estados fizessem uso da assistência técnica oferecida pelas Nações Unidas. Um conjunto de ofertas se abria neste sentido, desde programas de aperfeiçoamento por meio de bolsas de estudos no exterior, até a contratação de especialistas para implementar dispositivos legais em âmbito doméstico, os acordos firmados nas convenções internacionais.
Alguns meses após a Convenção Única (cujo texto sobre a folha de coca e cocaína sofrera influência da I Reunião Interamericana), mais precisamente entre 27 de novembro e 07 de dezembro de 1961 ocorrera a II Reunião Interamericana no Brasil, novamente no Palácio do Itamaraty, Rio de Janeiro. Além dos países presentes no ano anterior, Uruguai e Panamá também enviaram representantes, elevando para 14 o número de países representados. A II Reunião serviu para reafirmar as resoluções da anterior, verificar as mudanças após um ano, analisar os resultados da Convenção Única de 1961 na América, mas sobretudo, nos países produtores. A partir de 1961 criou-se o “Grupo Consultivo Interamericano”, que se reuniria ainda pelo menos mais duas vezes na cidade de Lima em 1962 e 1964. As atividades desse grupo encontram-se disponíveis nos arquivos das Nações Unidas.
O que a documentação nos mostra é que muito antes de Nixon, a ideia de que os países não produtores eram vítimas dos produtores já existia. A política específica sobre folha de coca e cocaína implementada na década de 1960, criminalizando usos, consumos e práticas, fez emergir nas duas décadas seguintes um dos maiores mercados ilegais do mundo, ao custo de muita violência.
[1] A Commission on Narcotc Drugs, substituiu o antigo Conselho Central Permanente do Ópio (ou Comitê Central), primeira estrutura internacional da Liga das Nações destinada a promover a regulação das substâncias consideradas nocivas e de caráter psicoativas.
[2] Título em Inglês: Report of the Commission of Enquiry on the Coca Leaf. Versão Digital: https://digitallibrary.un.org/record/637047
[3] CARVALHO, Jonatas Carlos de. Regulamentação e criminalização das drogas: a Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes - 1936-1946. Rio de Janeiro: Multifoco, 2013.192p.
[4] Alguns exemplos são: a CCUID na Venezuela e CONATON na Argentina em 1971; CONADRO na Costa Rica em 1972; no Uruguai foi criada a Comissão Nacional de Luta contra as Toxicomanias em 1974.
* Jonatas Carvalho é mestre em História pelo PPGH da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGH-UERJ) e doutorando no Programa de Pós-Graduação de Sociologia e Direito na Universidade Federal Fluminense (PPGSD/UFF). É pesquisador vinculado ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia - Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INCT-InEAC/UFF), associado ao Núcleo de Estudos Interdisciplinares Sobre Psicoativos (NEIP) e pesquisador no Núcleo de pesquisa em Psicoativos e Cultura (PSICOCULT).