Fernanda Novaes Cruz*
December 4, 2019|Brasil, Consumo, Política de drogas
A associação entre a proibição das drogas e a repressão policial é um dos principais temas que aparecem nos debates acerca das drogas. A partir de diversas perspectivas, muitos estudos já abordaram a problemática relação entre os policiais e o controle dos usuários e ou traficantes de drogas. Entretanto, pouquíssimos trabalhos debateram a posição dos policiais como usuários ou traficantes de drogas. É impossível conceber que os policiais estejam realizando a mesma atividade que as pessoas que eles são frequentemente treinados para combater?
Nem tanto para os que circulam nos corredores das instituições policiais, onde não são incomuns histórias que relacionam os policiais ao uso ou a venda de drogas. De forma menos comum, algumas matérias jornalísticas também já apontaram o envolvimento de policiais com o tráfico de drogas. Apesar da relevância do problema, porque ele é tão pouco discutido nos debates acadêmicos e na proposição de políticas públicas? O que já sabemos sobre esse assunto hoje? O que ainda temos à descobrir?
No caso brasileiro, é preciso destacar os estudos conduzidos pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) coordenados por Maria Cecília Minayo [1] e Ednilza Ramos[2]. Realizados em anos distintos, os estudos buscaram mensurar a qualidade de vida e a saúde física e mental dos policiais. Através de um questionário autopreenchido, os policiais respondiam se e com qual frequência faziam uso de drogas lícitas ou ilícitas.
O primeiro estudo, realizado em 2008 entre policiais militares, apontou o uso de maconha em 2,3% do grupo composto por policiais oficiais, suboficiais e sargentos, e 1% entre cabos e soldados. Com relação ao consumo de crack e cocaína, 2,3% dos policiais oficiais, suboficiais e sargentos alegaram terem utilizado, e 1,1% entre os policiais cabos e soldados. Devido ao caráter ilícito do consumo dessas substâncias, estima-se que haja considerável subnotificação desses casos. A título de comparação, o consumo diário ou semanal de álcool atingia cerca de metade do universo de policiais entrevistados. O segundo estudo realizado em 2013 entre os policiais militares e civis do Estado do Rio de Janeiro identificou que entre os policiais militares, 1,1% alegaram terem feito ao longo do último ano o uso de maconha, cocaína ou crack. Os resultados encontrados foram considerados subnotificados por ambas as autoras, especialmente no que tange às drogas ilícitas. Para as autoras, a subnotificação poderia estar associada ao medo de represálias por parte dos policiais.
Alguns anos depois, um estudo conduzido pelo Grupo de Estudos e Pesquisa em Suicídio e Prevenção (GEPeSP) buscou compreender os motivos do suicídio policial [3]. A partir de entrevistas com 211 policiais militares do Estado do Rio de Janeiro, os autores destacaram que entre os policiais que haviam pensado e ou tentado suicídio haviam relatos de uso abusivo de drogas.
Por ter trabalhado em pesquisas nas instituições policiais, como a citada acima, e ter lecionado para profissionais de segurança pública por dois anos e meio, escutei uma série de relatos sobre o uso de drogas entre os policiais. Todos os relatos que pareciam impressionantes para mim, eram considerados corriqueiros para alguns dos que me narravam os relatos. Naquela época, eu que já estava interessada pelo debate sobre às drogas, decidi me debruçar sobre esse tema em minha tese doutoral. No entanto, restavam alguns questionamentos: como abordar esse assunto em uma perspectiva qualitativa? Como acessar a esses policiais?
Enquanto cientistas sociais, sabemos sobre as dificuldades de encontrar interlocutores associados à atividades ou práticas não aceitas pela sociedade. No caso em questão somavam-se a essas dificuldades uma questão institucional, afinal, qual interlocutor quer ter seu estigma exposto perante seus superiores e seus colegas de trabalho, especialmente em um contexto militarizado, onde esses profissionais podem ser facilmente punidos por suas condutas.
A aproximação com a clínica de reabilitação para “dependentes químicos” no interior da polícia militar foi a forma possível de abordar esse tema. Apesar dessa aproximação ter permitido o acesso a esses policiais, essa discussão precisa ser realizada com cautela por dois motivos. Em primeiro lugar, essas narrativas precisam ser analisadas a partir daquela realidade específica: policiais militares cariocas usuários de drogas (lícitas e ilícitas) que buscaram tratamento dentro de sua corporação, o que não representa todo o universo de possibilidades de policiais usuários de drogas [4]. Em segundo lugar, é preciso considerar a influência do tratamento sobre essas histórias. Na clínica em questão é adotado o tratamento dos Doze Passos e Doze Tradições, oriundos de irmandades anônimas, como Alcóolicos Anônimos e Narcóticos Anônimos. Essa modalidade de tratamento sugere uma proposta de reinterpretação da vida dos seus usuários, através de uma narrativa comum que abarque não apenas os sintomas e diagnóstico, mas ainda a trajetória anterior ao uso de drogas, a partir do tratamento e as possibilidades futuras. Desta forma, as narrativas estão bastante transpassadas pelas crenças e premissas do tratamento.
Considerando essas especificidades, podemos discutir alguns pontos relevantes sobre o tema. As formas de acesso à droga para um policial é a primeira reflexão importante a ser realizada. Embora o uso de drogas ilícitas, além de ilegal, esteja previsto como uma transgressão ao Regulamento Disciplinar da Corporação, algumas formas de acesso à droga, associam-se diretamente ao desvio de conduta desses policiais, ou seja, tratam-se de formas de acesso que operam a partir do exercício da profissão.
A apreensão de drogas faz parte do exercício do trabalho policial, e é uma das principais formas de eles terem acesso a elas. O reaproveitamento de drogas apreendidas é uma prática identificada por muitos policiais. Essas drogas são reaproveitadas de algumas formas como: para repassar para algum conhecido, para comprar informações privilegiadas de informantes e, algumas vezes, para o consumo próprio. Também foram mencionadas formas de acesso às drogas relacionadas a práticas de extorsão. Um dos policiais entrevistados, contou que quando não estava de serviço simulava abordagens com usuários de drogas para tomar a droga para si próprio.
Ao mesmo tempo, nem todas as formas de acesso são perpassadas pelo desempenho da atividade policial. De forma semelhante as pesquisas que falam as formas de acesso às drogas, alguns policiais afirmaram terem comprado as drogas por meio de “esticas”, uma pessoa- conhecida ou desconhecida- que faz a intermediação entre o vendedor e o comprador. Existem ainda os que relataram também irem até os pontos de vendas comprar as drogas, embora essa prática tenha sido considerada de muito risco para outros policiais.
Outra questão relevante é sobre a droga mais utilizada. Entre as ilícitas, a preferência de grande parte dos policiais é pela cocaína. Considerada uma droga estimulante, essa preferência pode estar associada às demandas do trabalho policial. O uso de drogas como o crack e a maconha também foram mencionadas, embora com menor frequência.
Evidentemente que outra questão que se coloca sobre o tema é a relação entre o uso das substâncias e o trabalho policial. O estresse relacionado ao trabalho seria o causador do uso abusivo dessas substâncias? A frequente exposição ao risco? Uma válvula de escape para as relações hierárquicas e desiguais da Corporação? O recorte possível para a realização dessa pesquisa certamente influenciou as respostas para essas perguntas.
O tratamento adotado na clínica, oriundo das irmandades de Doze Passos acredita que a dependência química é uma doença incurável, progressiva e fatal. Além disso, a doença é hereditária e se manifesta através de um comportamento “compulsivo”, que pode ser observado mesmo antes do início de uso da substância. Para um dos policiais entrevistados, jogar bola sem parar quando era criança, já era um traço de comportamento compulsivo. Ao atribuir a doença a perspectiva individual, o tratamento suaviza a importância do impacto do trabalho policial sobre a trajetória de uso de drogas desses indivíduos. Em outras palavras, por ser um indivíduo “compulsivo”, o uso de drogas se manifestaria naquela trajetória independente da profissão que aqueles indivíduos escolhessem. Em casos extremos, a escolha pela carreira policial chega até a aparecer como uma tentativa de controlar os impulsos “compulsivos”.
Neste trabalho, me propus a explorar um campo de pesquisa quase desconhecido. Embora os resultados encontrados nesse percurso nos ajudem a compreender a importância deste tema, muitas questões permanecem em aberto. Ao mesmo tempo, torna-se cada vez mais urgente traçar novas estratégias de pesquisa visando aprofundar esse debate. É preciso considerar nos debates sobre as políticas de drogas os policiais não apenas enquanto agentes repressores, mas ainda enquanto consumidores. E de que forma esse uso pode estar se refletindo nos modelos de política de drogas e de segurança pública vigentes.
Referências bibliográficas
[1] MINAYO, MCS., SOUZA, ER., and CONSTANTINO, P., coords. Missão prevenir e proteger: condições de vida, trabalho e saúde dos policiais militares do Rio de Janeiro [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2008. 328 p.
[2] SOUZA, E. R., SCHENKER, M., CONSTANTINO, P., & CORREIA, B. S. C. (2013). Consumo de substâncias lícitas e ilícitas por policiais da cidade do Rio de Janeiro. Revista Ciência & Saúde Coletiva, 18(3), 667-676.
[3] MIRANDA, D. Porque os policiais se matam? condições de vida, trabalho e saúde dos policiais militares do Rio de Janeiro. 146. ed. Rio de Janeiro: MÓRULA, 2016.
[4] CRUZ, F.N. Os Doze Passos do “ganso”: a trajetória de policiais militares usuários de drogas em uma instituição reinterpretativa. 2019. 222f. Tese (Doutorado em Sociologia)- Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Rio de Janeiro, 2019.
* Fernanda Novaes Cruz é pós-doutoranda no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP). Doutora em Sociologia pelo IESP-UERJ e faz parte do Grupo de Estudos e Pesquisa em Suicídio e Prevenção (GEPeSP).