Frederico Policarpo*
May 13, 2020|Brasil, Marijuana, Política de drogas
Introdução
Começo já avisando que não queria escrever nada. Imagino que muitas pessoas estão passando por isso, por essa dificuldade em continuar a trabalhar na quarentena. Por várias razões que não interessam ser ditas aqui. Apesar de ter a sorte de neste momento não precisar sair às ruas para trabalhar, já que as reuniões e as aulas podem ser feitas pelo computador, está difícil fazer qualquer coisa.
Na verdade, não estou sem trabalhar. Estou juntando todas as forças para preencher o relatório Sucupira para a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior (CAPES), do governo federal. Faço parte de um PPG[1] e, como todo docente que faz parte de um, todo ano é preciso preencher esse relatório com uma série de informações que serão avaliadas pela Capes. A cada quatro anos, acontece uma avaliação geral, quando é atribuída uma nova nota a cada programa e, consequentemente, os recursos de cada um. Daí a importância desse relatório. A minha reclamação não é com o preenchimento em si. Apesar de chato, é necessário. O meu problema é com o momento caótico que vivemos e que repercute diretamente no que estou fazendo. Para se ter uma ideia, a Diretora de Avaliação da Capes, responsável pelo Sucupira, pediu exoneração no mês passado, depois de um desentendimento com o Ministro da Educação. Semanas antes, o presidente do CNPq soube de sua exoneração pelos jornais. Podem parecer reclames pessoais, mas são facilmente extensíveis para outras esferas e outras preocupações de boa parte da população brasileira.
Enfim, enquanto todos se focam na pandemia, o governo faz mudanças importantes, sem o devido e necessário debate público. É isso que está sugando minha atenção, misturado com indignação e revolta. Por isso a dificuldade em pensar em algo para escrever que pudesse ter alguma relevância para a discussão sobre drogas. Depois de muito esforço pensei em duas ideias que, de alguma maneira, propõem um diálogo com os estudos sobre as drogas. São duas ideias mais com objetivo de provocar do que de analisar: uma é a de “empresários imorais” e outra é algumas reflexões sobre o futuro da roda de fumo. A primeira, fala do passado e do presente, a segunda, do mundo pós o vírus COVID-19.
Sobre a primeira ideia, estou fazendo referência direta ao clássico texto de Howard Becker, Outsiders. Mas, pensando no vírus, ou melhor, em nossas interações com ele, gostaria de deslocar em outra direção o conceito de Becker. Ao invés de ficar no plano das moralidades, das disputas e das relações de força em torno do que pode ou não pode, o que vou chamar de “empresário imoral” nega a existência de outra perspectiva ao implodir a possibilidade de um consenso mínimo.
Em Becker, o empresário moral sabe que há outro lado, com ideias, valores e moralidades diferentes da sua. Por isso, não é difícil que esse empresário moral se sinta vocacionado, se considere em uma missão do bem contra o mal. Ele precisa educar, disputar as informações, criar e impor as regras das condutas que serão consideradas “corretas”. A implicação direta são os comportamentos desviantes dessas condutas, que serão identificados e rotulados como “errados”. Daí que não há nada de intrinsicamente errado no uso da maconha em si. A questão que importa é analisar os critérios morais que serão utilizados para definir se essa é uma prática condenável ou não. Essa é uma das grandes sacadas de Becker, em dar destaque à dimensão social do uso da maconha, e que transformou Outsiders em um clássico para as pesquisas sobre o tema das drogas. É uma contribuição que continua relevante porque permite que a discussão em torno do “proibicionismo”, da “guerra às drogas” ou da afirmação genérica de “as drogas fazem mal” sempre possam ser colocadas nos termos das ciências sociais, não só das ciências biológicas.
Há um pano de fundo que sustenta toda essa problematização que não é tão discutida, porque é implícita ao argumento. Trata-se da existência, obrigatória, de um consenso mínimo entre as partes, que independe das moralidades em jogo, e que todos os lados concordam. No caso do uso da maconha, é a concordância implícita do efeito da substância no organismo humano. Proibicionistas ou liberais, abstêmios ou usuários, todos estão de acordo e não duvidam dos efeitos das substâncias nos indivíduos. Esse é o pano de fundo, o consenso mínimo para que a disputa se desenrole.
Ao contrário, o “empresário imoral” não está disputando com moralidades divergentes da sua. Ele acha que simplesmente não existe outra perspectiva. Não há espaço para o embate de posicionamentos, debate de ideias, só há espaço para a concordância. Posições contrárias são desqualificadas e ignoradas. Essa postura é bem conhecida e típica de regimes totalitários e autoritários, que não reconhecem a diferença e diversidade. O “empresário imoral”, no entanto, apresenta mais uma característica: a inexistência de um consenso mínimo. Esse é um aspecto definidor relevante e se torna mais inteligível se comparamos com o “proibicionismo” enquanto política de Estado. Por exemplo, apesar das sensibilidades jurídicas locais que atualizam políticas proibicionistas específicas – que vão da tolerância, passando pela multa e prisão até pena de morte – há um consenso mínimo entre todos esses governos sobre a necessidade de adoção e manutenção dessas políticas. Isso não é pouco. Como costuma lembrar o cientista político Thiago Rodrigues, o “proibicionismo” consegue deixar no mesmo lado da mesa países como EUA e Irã, que em tudo mais são adversários. Mas, para o “empresário imoral”, esse consenso mínimo não é necessário, de fato, é mesmo evitado.
Bolsonaro é o seu tipo ideal. Enquanto praticamente todo mundo, tanto liberais, bem como revolucionários, democratas e conservadores, não duvida dos sérios efeitos do vírus COVID-19 no organismo humano, nosso presidente coloca em dúvida a própria existência do vírus, que classifica como uma “gripezinha”. Esse comportamento poderia ser classificado como delirante, além de imoral. Porém, para surpresa e indignação de muitos, Bolsonaro consegue manter um eleitorado fiel. Esses eleitores também apresentam sinais de delírio, que parecem ter começado durante a campanha para a eleição com a crença na mamadeira de piroca e atualmente se manifesta com a certeza do “comunavírus”, como recentemente afirmou o Chanceler brasileiro. Mas se classificamos como delírio, nos afastamos de uma compreensão sociológica e, pior, ficamos de mãos atadas, só torcendo para que o feitiço se quebre. De novo, tomando de empréstimo mais uma ideia de Becker, chamaria essas pessoas de “impostores da regra”. São impostores porque querem impor aos outros as regras que não seguem. Os espécimes mais recentes podem ser encontrados acenando dentro de seus carros nas manifestações que pedem pela volta à “normalidade” e contra o isolamento social imposto pelos governos estaduais e municipais.
O vírus, ao contrário das drogas, não precisa de convite, ele interage com o organismo humano independente, ou melhor, apesar da vontade dos indivíduos. Ele possui agência, inclusive se adaptando através de mutações, mas nós podemos controlar os seus agenciamentos. Podemos evitar ao máximo o contato, criando protocolos como o uso de máscaras, limpeza das mãos, isolamento social, quarentena e “lockdown”. Essa é uma escolha política. Desacreditar a existência do vírus, como faz o “empresariado imoral” do bolsonarismo, não é uma escolha. É simplesmente achar que o vírus não existe, implodindo o consenso mínimo necessário para que sejam feitas escolhas. É a única possibilidade, o que deve ser feito.
Por isso, quando indagado sobre as mortes em decorrência do vírus, o presidente pode responder: “E daí?”
E daí que o modus operandi desse “empresariado imoral” está se espalhando por todo aparato estatal. Acho que o primeiro caso que repercutiu foi a demissão do ex-presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (o Inpe) em agosto de 2019, por ter divulgado dados que indicavam a aceleração do desmatamento na Amazônia. Bolsonaro levantou a suspeita que o então presidente do INPE podia “estar a serviço de alguma ONG”. A lista é longa. O exemplo mais notável foi a recente substituição, em meio à pandemia, do ministro de Saúde por conta de divergências com o presidente. Bolsonaro incentivou o uso da cloroquina e desrespeitou as medidas de isolamento social defendidas pelo então ministro, afirmando que “ninguém vai tolher meu direito de ir e vir”. Nestes dois exemplos, o consenso é desafiado: os dados espaciais do INPE e as orientações da Organização Mundial de Saúde.
Para finalizar essa primeira ideia, retorno às minhas reclamações iniciais. Em janeiro de 2020, foi anunciado o novo presidente da CAPES. Ele é defensor da abordagem educacional do criacionismo e meses antes de sua nomeação declarou que a teoria que diz que Deus criou a vida deve ser “contraponto à teoria da evolução”. O “meu” problema é perceber que se o “empresariado imoral” pode duvidar da existência do vírus e da teoria da evolução biológica, não há limites para o contrassenso. Não é de hoje que a pesquisa vai mal no Brasil. Mas agora ela pode sucumbir diante do “empresariado imoral”.
A roda do futuro
Sem dinheiro para a pesquisa, não poderemos acompanhar as transformações impostas pelo vírus nas relações sociais. Um ponto interessante seria avaliar como será a roda-de-fumo do futuro. A roda tem uma especificidade em relação às outras sociabilidades mediadas por substâncias, que é o compartilhamento do baseado entre as pessoas que estão na roda. Difícil imaginar uma roda em que cada um fuma seu próprio baseado. O que vai acontecer com a roda, qual será o seu novo formato e como será sua dinâmica, é algo para futuras pesquisas, se elas ainda forem possíveis.
[1] Programa de Pós-Graduação em Justiça e Segurança, da Universidade Federal Fluminense
*Frederico Policarpo, Universidade Federal Fluminense (UFF/Brasil) / Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (InEAC)
Doutor em Antropologia (UFF/Brasil, 2013), professor do curso de bacharelado em Segurança Pública e da Pós-Graduação em Justiça e Segurança (UFF/Brasil). Pesquisador do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (InEAC/UFF)