Beatriz Brandão *
January 21, 2020|Brasil, Comunidades terapéuticas, Consumo
Foto de Eduardo Montecino/OCP News
No debate sobre a atenção e o cuidado de usuários de drogas as comunidades terapêuticas (CTs) possuem espaço privilegiado. A construção da crítica a esse modelo acompanhou uma formativa de critérios do que deve ser a política de cuidado e de como o tratamento dialoga e se aloca nos campos da saúde, da segurança, e da religião, principalmente.
As críticas dispensadas a atuação das comunidades terapêuticas vão desde o argumento dos seus usos às formas manicomiais - que a Reforma Psiquiátrica tentou superar por meio da forma da lei
Lei 10.216/2001. Até a presença da esfera religiosa como promotora e articuladora política.
Outro tônus da crítica se dá, também, no indicativo que, de forma geral, as comunidades terapêuticas dificultariam o desenvolvimento das singularidades e potencialidades dos acolhidos. Soma-se a não distinção entre uso, abuso e dependência de substâncias psicoativas, sendo o mesmo programa terapêutico aplicado a todos os residentes das instituições.
Acontece que, como sabemos, quando falamos na existência de política sobre drogas há dois pontos cruciais, um a base proibicionista que a norteia e o outro seu caráter de política pública recente no referente à especificidade do tratamento em saúde pública. A base proibicionista está absorvida desde o Código Penal de 1890, em que o Brasil entrou sem equívocos na transnacionalização do controle e na lógica da guerra às drogas. Tivemos uma legislação única, mesmo diante das mudanças no tecido social, que foi a mesma desde a Lei 6.368/76 até a década de 2000 com a 10.409/02 e a 11.343/06 [1], essa vigorou até a última Lei n. 13.840/19. Todas, com radicalidades ou fragilidades, tiveram legislação restritiva à produção, comércio e consumo, enfocando internação e prisão de usuários.
Ainda que, até então, tivéssemos apagamentos na gramática jurídica em relação ao espaço das CTs, isso não impediu a implementação de pedagogias de tratamento em relação ao uso e abuso de drogas. A existência das CTs data da década de 1970[2] nascidas no discurso de que sua existência se tornou necessária devido à invisibilidade do Estado em relação às substâncias psicoativas. Mesmo com a existência e presença das CTs desde essa época, conforme aponta o Ipea, 79% foi fundada na década de 1990.
Nesse sentido, destaco a década de 1990 como um marco para se redesenhar eixos que mobilizam a atenção e o cuidado com usuários[3]. Se o terreno vinha sendo encampado, pouco a pouco, com o surgimento, presença e formação das linhas de atuação das CTs, a década de 1990 trouxe algumas mudanças no curso que se desenvolvia. Destaco a “chegada” da redução de danos (RD) no Brasil em novembro de 1989, como própria da saúde com a luta contra o HIV. E a criação das federações, a FEBRACT (Federação Brasileira das Comunidades Terapêuticas) e FETEB (Federação das Comunidades Terapêuticas Evangélicas do Brasil), por exemplo. Ter uma federação se tornava símbolo e possibilidade de muitos caminhos, desde a busca de integração, unidade, integralidade e elegibilidade, quanto a desafios relativos à tentativa de um enquadramento normativo que desse conta do fôlego da diversidade em que se constituíam. Outro ponto é que a existência de federações trouxe foi a possibilidade de financiamento, um dos temas mais desafiantes no debate público hoje.
Devido à aceitação e ao fortalecimento das CTs nesse cenário, elas tiveram que se adequar a um escopo médico e legal. Frente a uma normatividade que tenta abranger e unificar seus parâmetros. Surgiram tensões entre a normatividade que tenta estabelecer o lugar e a função das CTs no cenário de assistência e o nascimento de outros centros, em sua diversidade, que também reivindicam a prerrogativa e a legitimidade de tratamento.
Quando da Reforma Psiquiátrica pela Lei 10.216/2001, pelo Ministério da Saúde, ainda que a presença delas fosse de relevo, o documento não cita CTs. No mesmo ano, temos uma RDC direcionada especificamente para CTs, a RDC 101, revogada pela RDC 29 em 2001[4]. Se propõe à licença da autoridade sanitária e previsão de inspeção anual, limite de vaga por unidade, número mínimo de profissionais, espaço para uso de oficinas terapêuticas. O Decreto presidencial 4.345/2002, introduziu o prefixo “anti”, instituindo a Política Nacional Antidrogas (PNAD), que já orienta programas de Redução de Danos. Um marco na política pública para drogas veio do Ministério da Saúde com a Portaria 457/2003, com a instituição do Programa de Atenção Integral à usuários de Álcool e outras Drogas. Adotando a redução de danos como estratégia prioritária, traz o tratamento sobre usuários para a área da saúde mental, tendo os CAPS AD (Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e Drogas) e outros serviços como principais receptores no que se refere ao cuidado na disposição em política sobre drogas.
Enquanto a disputa interna entre os idealizadores das CTs não tenha assumido tanta visibilidade para além de partes interessadas e impelidas, no contexto macro político ela se deu no binômio CT x RD. O campo sobre atenção e cuidado foi posto em termos de dualidade, na disputa de narrativas entre ambos os modelos. Entre a abstinência e a redução, são tratadas e postas sempre como díspares em todas as proposições e atuação.
Acredito que os desenhos políticos hoje superam os dilemas encontrados desde seu nascedouro. Diante do caminho legal, o debate hoje se dispõe nas disposições e questionamentos do lugar que ocupa a CT. Principalmente no tocante à constante comparação com os serviços da saúde mental, há um hiato entre o espaço em que fomentam seu crescimento. O que é apreendido como saúde no tratamento? Onde se deslocam e se firmam como campo possível de legitimação? Lançam pedagogias de tratamento ou formam seus próprios cuidados em dissonância com os da saúde coletiva? É válido se articularem enquanto instrumentos de saúde para financiamentos?
E mais, quais os sentidos as CTs buscaram desde a década de 70, quando se formaram no discurso da negligência do Estado?
Esses questionamentos estão em curso e ganham representatividade tanto nos campos legislativo e executivo. E o que vemos acontecer é a articulação das tentativas de normatização das CTs e os diversos meios pelos quais elas tentam se instaurar e se legitimar no espaço institucional. Mas isso não acontece sem que respondam positivamente aos modelos impostos, como o médico-legal. Por meio do entendimento de seu histórico, seu lugar no cenário social e sua influência na formatação de toda uma rede de tratamento, hoje tentam se aproximar de uma formalidade, apresentando-se como um modo se operacionalizar formas de subjetivação, buscando se distanciar de um modelo de produções disciplinares. No entanto, isso não se dá sem disputas internas do que seria a “CT verdadeira” ou a “CT pura”.
O campo visto hoje é que mecanismos legais para o tratamento do usuário inseridos na saúde coletiva existem. A existência e resistência de um trabalho que ofereça serviços operacionalizados pela Redução de Danos estarão sempre pressionando a existência de modelos tutelares e institucionalizantes como das CTs. Menos simples do que nos parece, saber o lócus da CT, também não nos dá respostas de antemão sobre para onde elas caminham.
Beatriz Brandão é doutora em Ciências Sociais pela PUC RIO. Pós doutoranda em Sociologia pela USP (Universidade de São Paulo). Pesquisadora do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) na pesquisa nacional sobre metodologias de cuidado a usuários problemáticos de drogas.
[1] CAMPOS, Marcelo da Silveira. Pela metade: a lei de drogas no Brasil. São Paulo: Annablume, 2019.
[2] Damas FB. Comunidades Terapêuticas no Brasil: expansão, institucionalização e relevância social. Rev Saude Pública. 2013; 6(1):50-65
[3] SANTOS, MPG. Nota técnica - perfil das comunidades terapêuticas brasileiras. IPEA: Brasília: Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia, 2017
[4] Essas modificações legislativas se deram no âmbito da Agência Nacional de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde.
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Beatriz Brandão, Universidade e departamento ou centro de pesquisa ao qual pertence. Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA)
Doutora em Ciências Sociais pela PUC-RIO. Mestre em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ. Pesquisadora do Ipea na pesquisa nacional sobre metodologias de cuidado a usuários problemáticos de drogas. Foi professora substituta do departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS-UFRJ). Possui Pós Graduação/ Especialização em Políticas Públicas pela Escola de Políticas Públicas e Governo do Instituto de Pesquisa do Rio de Janeiro (EPPG/IUPERJ) e Especialização em Estudos Diplomáticos pelo CEDIN. Graduada em Ciências Sociais (Licenciatura) e em Comunicação Social - Jornalismo. Pesquisa temas relacionados às dinâmicas e trajetórias institucionais, com ênfase em Comunidades Terapêuticas e CAPS AD centrados no cuidado a usuários de drogas e ex-traficantes.