Paulo Fraga*
October 24, 2019|Brasil, Marijuana, Política de drogas
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A Polícia Federal Brasileira erradicou até o dia 30 de abril do presente ano 505 mil pés de maconha na Região do Submédio São Francisco, principal região a produzir a erva de forma extensiva no Brasil, em consequência de duas operações policiais coordenadas pela instituição. Essas ações tornaram-se rotina nas últimas décadas na região. Anualmente entre 1.200.000 e 1.800.000 pés de maconha, além de milhões de mudas e material já pronto para consumo são destruídos. Nas décadas de 2000 e de 2010, dezenas de operações foram executadas, sempre sob o comando da Policia Federal, muitas vezes em ações conjuntas com as polícias estaduais da Bahia e de Pernambuco. As operações, que variam, em médiade 2 a 3 ações anuais, na Região do Vale do São Francisco, seguem o mesmo roteiro de localização e destruição. No entanto, o processo repressivo não foi capaz de arrefecer o plantio. Conforme dados da própria Polícia Federal, entre 2005 e 2017, em 13 anos de ação, o número de pés de maconha erradicados não se altera, mantendo-se o mesmo número de pés erradicados nos anos extremos da série histórica.
Apesar do país não se destacar no cenário regional e mundial como país produtor de plantas para produção de drogas ilícitas, diferentemente de alguns de seus vizinhos como Colômbia e Paraguai, o país tem uma produção de cannabis para fins de produção de maconha significativo. Estima-se que a produção nacional esteja entre as maiores da América Latina. No entanto, diferentemente dos outros países da Região, a produção brasileira é consumida no próprio paíse não atende toda a demanda do mercado nacional.
A maioria da maconha consumida para fins recreativos no Brasil advém do Paraguai. De outro modo, a região produtora da planta no país está entre as mais pobres. Essa conjunção leva a produção de cannabis no Brasil a se diferenciar de outras regiões que a produzem em larga escala.
O governo brasileiro investiu basicamente, no enfrentamento do problema, em ações policiais de destruição de plantios e prisão dos envolvidos, em sua maioria, pessoas inseridas em elos subalternos da produção. Importantes iniciativas como o incentivo para a produção de outras culturas agrícolas legais; programas de desapropriação para fins de reforma agrária, e, principalmente, financiamento específico para os pequenos agricultores da região não foram implementadas.
A região apresenta problemas para o desenvolvimento agrícola, pelo seu clima semiárido. Devido aos longos períodos de estiagem, os pequenos agricultores encontram sérias barreiras para o cultivo de produtos agrícolas tradicionais, como algodão e cebola, e a agricultura familiar sobrevive com grande dificuldade.
Ao longo de décadas as dificuldades de sobrevivência em uma região semiárida aliadas a falta de politicas públicas para os trabalhadores rurais e para a agricultura familiar que representasse uma real melhoria de suas qualidades de vida, moldaram a estrutura dos plantios ilícitos na Região. O investimento no agronegócio, com uma estrutura de estradas que permitiu o escoamento da maconha produzida formaram as condições para a consolidação do Polígono da Maconha, nome discriminatória aludido à região. Além da demanda por maconha e a existênca de uma estrutura criminal que migrou para esse tipo de atividade.
A consolidação e estruturação de redes criminosas locais foi possível, além de outros fatores , à migração das lutas e rixas de determinadas famílias pelo controle político e pelo poder local, para o domínio da atividade ilícita que passa a gerar renda e riqueza. O conhecimento da região, o histórico de determinadas famílias em outros negócios ilícitos como grilagem de terra, crimes políticos, assassinatos, corrupção com dinheiro público e outros atrelados ao mandonismo local foram fatores importantes para estabelecer redes criminosas para o escoamento da produção.
Por outro lado, o agronegócio das frutas tropicais, que recebeu incentivos governamentais, desenvolvido com agricultura irrigada e da produção de vinhos que se instala em alguns municípios da região, apresentam uma forma de produzir moderna, mecanizada, poupadora de utilização de força de trabalho, não se apresentando, portanto, como alternativa substantiva de empregabilidade. Além disso, a região, considerada pobre pelos indicadores de Desenvolvimento Humano, foi alvo de intervenção governamental no âmbito de explorar os potenciais do Rio São Francisco com a implementação de hidrelétricas para geração de energia em pontos específicos do rio. Foram construídas três barragens: Xingó, Paulo Afonso e Itaparica nos anos 1980, que impactou decisivamente a região. Várias cidades ficaram submersas, o que acarretou um deslocamento populacional significativo e o consequente movimento de luta dos trabalhadores rurais, inconformados em receber do governo apenas indenizações em dinheiro, sem políticas públicas de reassentamento da população atingida.
O deslocamento de populações teve outro efeito negativo para os agricultores familiares: a formação de novas gerações de agricultores que cresceram sem ter contato com o trabalho agrícola. Paradoxalmente, muitos jovens tiveram o primeiro contato com a atividade laboral na agricultura por meio do cultivo da cannabis. Por fim, o investimento governamental para o desenvolvimento da região privilegiou o agronegócio em detrimento da agricultura familiar.
Nesse sentido, embora a grande maioria dos trabalhadores rurais não esteja envolvida com as atividades de ilegais de cultivo de cannabis, a cultura se apresenta como alternativa de renda para muitos. A plantação de cannabis para fins ilícitos no Vale do São Francisco reproduz as dificuldades de sobrevivência de populações em áreas com pouco incentivo ou condições para o desenvolvimento da agricultura legal tradicional observada por estudiosos que desenvolveram estudos em outros países como Lesoto e a região de Rif no Marrocos. A cannabis aparece nesses contextos como cultura de compensação em regiões fortemente dirigidas às culturas de rendas para exportação e em zonas submetidas à degradação das condições ecológicas e à redução das superfícies cultiváveis ou em ambos os fenômenos.
Ao longo de décadas, portanto, as dificuldades de sobrevivência em uma região semiárida aliadas à falta de politicas públicas para os trabalhadores rurais e para a agricultura familiar que representasse uma real melhoria de suas qualidades de vida, moldaram a estrutura dos plantios ilícitos na Região.
O cultivo ilícito de cannabis no Brasil cresceu em relação direta com a intervenção estatal e, assim como em outros países, é produto da ausência de políticas agrícolas e sociais para trabalhadores rurais e populações vulneráveis que possuem dificuldades de sobreviver com a agricultura tradicional. Há uma relação direta entre plantios lícitos e ilícitos nesses contextos, haja vista o envolvimento de agricultores com o plantio ilícito se concretizar devido às dificuldades com a agricultura tradicional. A questão que se coloca, hoje, é a necessidade de mudança das políticas de drogas e da ação estatal na região. A continuidade das ações de erradicação, somente fomentará a maior organização criminosa em torno do cultivo, notadamente, a possibilidade de que grupos criminosos que disputam o tráfico de drogas do sudeste do país e que hoje se encontarm no Nordeste possam se interessar por esse tipo de atividade criminosa.
De outra maneira, a possibilidade da cannabis se tornar um produto importante na região, com a sua utilização legal para fins comerciais, notadamente, no sistema de cooperativa, poderia representar mudanças importantes para o desenvolvimento local. Se isso não se efetiva, o ciclo de repressão, exploração e criminalização se repete.
As discussões no Supremo Tribunal Federal e no Congresso Nacional Brasileiro podem apontar para uma descriminalização do uso e a liberação do uso medicinal da cannabis. No entanto, essas medidas não irão impactar a curto e médio prazos medidas que busquem legalizar o plantio de cannabis na região, seja para sua utilização para uso medicinal, seja para a utilização do cânhamo para fins insdustriais.
*Paulo Fraga é bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, possui mestrado em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutorado em Sociologia pela Universidade de São Paulo. É professor associado da Universidade Federal de Juiz de Fora, onde coordena o Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e o Núcleo de Estudos sobre política de drogas, violências e Direitos Humanos. Foi pesquisador visitante da École de Criminologie, na Université de Montréal, compõe a Reseau Cannabis Sud, sediada no C. Émile Durkheim-U. Bordeaux, é bolsista de produtividade em pesquisa (CNPq) e foi Professor Visitante da Universidade Católica Portuguesa- Porto. Desenvolve estudos e pesquisa sobre plantios ilícitos no Brasil e América do Sul, sobre políticas de drogas e de usos não problemáticos de drogas no Brasil e em Portugal.