Danielle Vallim*
April 15, 2020|Brasil, Consumo, Política de drogas, Reducción de daños
Foto: Bruno Torturra. Equipe do Consultório de Rua atuando na cracolândia do Jacarezinho, RJ. 2014.
A pandemia gerada pelo Covid 19 vem trazendo novas formas de comportamento frente a um mundo que está tendo que aprender a parar. As rotinas estão sendo remodeladas e o mercado e a economia encontram-se estagnados. É necessário parar e repensar!
Ao mesmo tempo, especialmente no Brasil, temos o Presidente Bolsonaro incentivando as pessoas a saírem às ruas com a argumentação de que, caso as pessoas se mantenham em casa o Brasil terá uma grande crise econômica. Há duas semanas o dono de uma grande rede de hamburguerias, Junior Dursky, criticou as medidas restritivas sobre setores econômicos adotadas para evitar a transmissão do Covid19 no Brasil alegando que a economia é mais importante que algumas milhares de mortes. O BRASIL NÃO PODE PARAR!
Em contrapartida, temos dentro da estrutura de Governo uma figura que tem representado a “salvação” frente a estupidez da prole Bolsonarista. O atual Ministro de Saúde Henrique Mandetta vem questionando falas do Presidente Bolsonaro e se contrapondo às suas orientações garantindo, de alguma forma, medidas de saúde pública que vão de acordo com as orientações da OMS sobre como agir em tempos de pandemia. Porém, por se contrapor às loucuras bolsonaristas, Mandetta se tornou persona non grata do presidente que, por sua vez, vem “ameaçando” com frequência sua exoneração e tendo como primeiro cotado na lista de substitutos o deputado Osmar Terra, o rei da comunidades terapêuticas no Brasil.
Mas porque falar sobre isto? Simples. Se medidas de saúde pública para a população de uma maneira geral já estão sendo motivo de conflito político interno com argumentos “em prol da economia”, imagine medidas de saúde pública para atender às necessidades da população usuária problemática de drogas em situação de rua, assim como exercer ações de redução de danos no território onde se encontra a população em tempos de pandemia.
No Brasil, a primeira tentativa de implementação de um programa de Redução de Danos (RD) ocorreu na cidade de Santos, em 1989, por meio de um programa de troca de seringas em usuários de drogas injetáveis, contudo, acabou sendo suspensa pela Promotoria local. Em 1995 ocorreu o primeiro Programa de Troca de Seringas (PTS) do Brasil e América Latina na cidade de Salvador, Bahia e em 2003, o Ministério da Saúde elegeu a redução de danos como estratégia de saúde pública, havendo, aproximadamente, 279 Programas de Redução de Danos. Desde então, houveram diversos avanços e recuos na política de Redução de Danos no país, todas condicionadas aos interesses políticos que transitam entre a instituição de Consultórios de Rua à era Bolsonarista das Comunidades Terapêuticas (não vou falar sobre comunidades terapêuticas porque temos aqui no blog um outro artigo escrito pela colega pesquisadora Beatriz Brandão que trata do assunto https://redesdal.org/blog/f/para-onde-caminham-as-cts).
O Consultório de Rua (CR) é uma experiência surgida no final da década de 90 na cidade de Salvador, BA, através do Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas (CETAD), para atender as demandas da população em situação de rua e do consumo de drogas. Em 2009, o CR foi proposto como uma das estratégias do Plano Emergencial de Ampliação de Acesso ao Tratamento e Prevenção em Álcool e outras Drogas no Sistema Único de Saúde (PEAD), e, em 2010, foi incluído no Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas.
O trabalho do CR surgiu em função das demandas para prover atendimento especializado à população em situação de rua, particularmente usuários de drogas em situação de vulnerabilidade. Em função das dificuldades desta população de adesão ao modelo tradicional dos serviços de saúde, o objetivo era ampliar o acesso dos serviços de saúde oferecidos pelo Sistema Único de Saúde às pessoas que usavam álcool e outras drogas, por meio de ações de profissionais de saúde nos territórios de uso.
Porém, como já exposto, a era Bolsonaro atende aos interesses das Comunidades Terapêuticas que possuem seu papel privilegiado. E, quanto maior a força de uma política pública federal baseada em CTs, menores são as ações de RD como medidas de saúde pública, principalmente voltadas à população em situação de rua.
Projeção em prédio de SP realizada pelo Centro de Convivência É de Lei, SP. 2020.
Usuários problemáticos de drogas em situação de rua raramente ou nunca estão sós. Os controles sociais que se organizam em torno da vida social e do consumo de drogas geram uma territorialização do consumo, pois o uso de psicoativos caracteriza-se por ser uma atividade social com padrões de uso sujeitos a diversas determinantes como: disponibilidade, tendências e padronização cultural. Isto significa que usuários de drogas em contexto de rua tendem a se aglomerar e, como exemplo, temos as concentrações de usuários de crack (vulgo cracolândias) no Rio e em São Paulo, de usuários de heroína em Nova York e de usuários de solventes no Rio.
Sabe-se que em época de Covid 19 a exposição à aglomerações, especialmente em contexto de rua, aumenta consideravelmente as chances de se contrair o vírus. Contudo, diante uma política pública em que o Ministro da Saúde faz um esforço para garantir o mínimo recomendado pela OMS para a população de uma maneira geral, imagine para a população em contexto de rua!
Na cracolândia de São Paulo a ONG Centro de Convivência É de Lei vem atuando com ações de doações de comida, itens de higiene, e ações de informação sobre os sintomas, e formas de prevenção do Covid 19. Sua equipe de profissionais elaborou um material informativo sobre prevenção ao Covid 19 e fizeram colagens nos muros da cracolândia, e também, projeções em fachadas de prédios com informações de prevenção. Toda a ação partiu da própria equipe por meio de campanhas de doações de kits de higiene com álcool em gel, lenços de papel, sabonete, absorventes. Os insumos como piteiras, protetores labiais, preservativos internos e externos e gel lubrificante foram comprados com os recursos da própria equipe. Também realizaram a campanha de doação de comida que, por sua vez, foi distribuída pelos coletivos A Cracô Resiste, Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas, Instituto Luz do Faroeste, Pagode na Lata e Tem Sentimento (Dados: Centro de convivência É de Lei). Como pode-se observar, tudo feito por e com iniciativa da população civil.
Cartaz campanha de doação promovida feito pelo Centro de Convivência É de Lei, SP. 2020.
No Rio de Janeiro ainda há os Consultórios de Rua com 7 equipes cobertas de dúvidas, em situações variadas e algumas bem desmontadas. As equipes vão a campo protegidas com todos equipamentos de proteção individual (os únicos insumos que recebem do governo), entregam quentinhas, material pra higiene e há uma há uma van com galões com bombas manuais e sabão para garantir a higienização da população. Além de lavar as mãos, a população usa a água para beber. Mas absolutamente todo o material de doação e higiene (galões de água, sabões, álcool e alimentos) foi captado por meio campanhas de doações realizadas pela própria equipe de profissionais do CR, e não vindas por meio de uma política pública de governo (Dados: Consultórios de Rua, RJ).
Cartaz campanha de doação promovida feito pela equipe do Consultório de Rua de Manguinhos, RJ. 2020.
A redução de danos têm como objetivos reduzir os danos e os riscos relacionados ao uso de drogas, pautados no protagonismo da população alvo, no respeito ao indivíduo e no direito deste às suas drogas de consumo. Todas as ações que estão sendo executadas a essa população em contexto de rua nas duas maiores metrópoles brasileiras estão partindo de iniciativa civil de ONGs, Coletivos e da vontade e esforço dos profissionais de saúde que se dedicam e se arriscam para prover a essa população as medidas mais necessárias neste momento. São indispensáveis medidas de saúde pública emergenciais.
* Danielle Vallim é antropóloga, Pós-doutoranda na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo – USP, e Doutora em Saúde Coletiva. Desenvolve pesquisas em que analisa a saúde, contexto sociocultural, violência, estigma, miséria, redução de danos, políticas de atenção, consumo abusivo e tráfico de drogas, encarceramento, relações de gênero, entre outros, em indivíduos socialmente/ historicamente marginalizados, especialmente em contextos urbanos em metrópoles como Rio de Janeiro, Nova York e São Paulo. Em 2017 sua tese de doutorado recebeu o Prêmio Carlini pelo seu caráter inovador no campo da regulamentação das drogas, das políticas públicas, prevenção, tratamento, modos de vida e redução de danos, dado pela Associação Brasileira de Estudos Multidisciplinares sobre Drogas. É vice-presidente e Coordenadora Científica Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas – ABRAMD, membro associada do Núcleo de Estudos do Uso de Psicoativos – NEIP e da Redesdal.