Fotografia própria no Ato da Luta Antimanicomial de Campinas em 2019.
O cuidado a pessoas que cometem abuso de substâncias é algo da ordem do imponderável, do esforço permanente e da imperfeição. As dinâmicas deste cuidar envolvem questões biológicas e fisiológicas, psíquicas e subjetivas, sociais e culturais. É um devir que se realiza cotidianamente e nunca está plenamente acabado. Cuidado é um verbo cujo o fim nunca acontece.
No caso brasileiro este trabalho permanente e que nunca se concluí – o cuidado a pessoas que cometem abuso de substâncias – acontece em duas escalas distintas que reverberam cada uma a sua maneira com diferentes consequências. A primeira dimensão se dá nas políticas públicas, que não cessam de se reformularem desde que ascenderam a institucionalidade em 2003 com a portaria nº336/2003 do Ministério da Saúde, que previa as primeiras formas de Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD). A segunda destas dimensões se dá no cotidiano dos distintos serviços que oferecem cuidado a esta população e na atuação dos profissionais que se dedicam a este cuidado.
Este pequeno ensaio trata da relação destas duas dimensões no Brasil atual. É fundamental compreender desde já que a relação entre elas é íntima e a possibilidade de sobrevivência das pessoas que cometem abuso de substâncias – especialmente as que encontram-se em maior estado de vulnerabilidade e precarização – depende do bom funcionamento de ambas.
Para desenvolver meu argumento me utilizo dos dados construídos ao longo de uma imersão etnográfica em um CAPS AD localizado em um grande município do interior do Estado de São Paulo. Realizei este trabalho de campo entre os meses de Janeiro e Março de 2021 e penso ser fundamental, para melhor compreensão do drama envolvido nos dados, ressaltar o contexto durante este período.
Na dimensão das políticas públicas a Rede de Atenção Psicossocial acabara de enfrentar a possibilidade de sua reformulação completa. No dia 4 de dezembro de 2020, é vazado um documento intitulado “Diretrizes Para um Modelo de Atenção Integral em Saúde Mental no Brasil”[2], durante uma reunião do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS). O documento, assinado por diversos setores institucionais de peso – Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Associação Médica Brasileira (AMB), Conselho Federal de Medicina (CFM), Federação Nacional de Médicos (FENAM), Associação Brasileira de Impulsividade e Patologia Dual (ABIPD) e Socidade Brasileira de Neuropsicologia (SBNp) – apresentava mudanças significativas quanto ao cuidado de usuários de drogas.
As dissonâncias do documento em relação à outros anteriormente produzidos sobre esta temática eram muitas. Dissonâncias textuais com os modelos de cuidado que foram desenvolvidos nos últimos 20 anos – como o uso do termo “Dependência Química” em detrimento de “uso problemático de drogas” que costumeiramente vinha sendo utilizada em documentos oficiais. Dissonância entre os agentes que costumeiramente produziam estes materiais – não mais foram convidados setores da sociedade civil, ou mesmo o Conselho Federal de Psicologia (CFP) que foram ávidos contribuintes para a elaboração de políticas públicas voltadas a saúde mental nas últimas duas décadas.
Contudo, este documento se mostrava particularmente agressivo as formas vigentes de cuidado a pessoas que fazem uso de substâncias. Estavam previstas extinções de aproximadamente 100 portarias, entre as quais as que davam sustentação legal para a existência do Consultório Na Rua – ambulatórios móveis que atuam em cenas de uso –, Serviço Residencial Terapêutico – casas de abrigo que podem ser utilizadas por usuários da RAPS e que contam com equipe profissional –, e os CAPS AD; todos fundamentais para a estrutura de atenção psicossocial álcool e drogas.
Na dimensão cotidiana do cuidado na saúde pública a situação também era precária. O Brasil enfrentava seu pior momento na pandemia de coronavírus. A média diária de óbitos durante o período que estive em campo era na casa de 2.000 e houveram dias onde foram registrados mais de 3.000 mortes. A taxa de ocupação de leitos nas UTIs beirava os 100% e o colapso do sistema de saúde era uma realidade muito possível no estado de São Paulo.
Os profissionais da saúde encontravam-se exaustos e além do vírus estavam expostos a síndrome de burnout, depressão, crises de pânico e ansiedade. De acordo com pesquisa da FioCruz realizada no mesmo período que estive em campo, o principal sentimento relatado pelos profissionais da saúde (87,6% %) foi o medo[3]. Com recursos reduzidos e as possibilidades de oferta de cuidado restritas os profissionais do CAPS AD acabaram limitados em suas ações.
No meio a este contexto caótico, de sofrimento, precarização da política pública e do financiamento destinado a saúde mental, as formas de cuidado continuaram, muitas vezes imperfeitamente, mas sem nunca deixar de existir. O restante do texto se estrutura de forma argumentar que o cuidado, apesar de nunca perfeito e acabado, é fundamental. Ao mesmo tempo, busco realçar e problematizar a relação entre estas duas dimensões do cuidado no Brasil atual.
No trecho a seguir, espero mobilizar uma cena etnográfica que servirá como ancora para que possamos desenhar os caminhos pelos quais estas duas dimensões de cuidado que chamei atenção anteriormente encontram-se relacionadas.
Cuidado (im)possível
Durante o período que estive campo acompanhei o caso de uma usuária do serviço que apresentava um complexo quadro de doença que se sobrepunha ao uso abusivo de crack, cocaína e álcool.
C.C. era HIV positivo, diagnosticada com hepatite c e, no momento em que o relato que se segue se deu, ela estava com Tuberculose ativa. Chegou informação ao CAPS AD, através de uma outra usuária do serviço, que C.C. estaria em um quadro muito precário e que deveria ser realizada uma visita domiciliar à ela. Após tentar contato telefônico com o pai dela sem sucesso – com quem a usuária morava – decidiu-se por fazer uma busca ativa – denominação da ação quando não se sabe onde um usuário se encontra, mas é necessário o contato.
Saímos de carro eu mais dois outros profissionais. Um enfermeiro que era trabalhador exclusivo no CAPS AD – diferente de seus colegas de profissão que muitas vezes trabalhavam em múltiplos serviços – e uma agente de saúde que trabalhava no serviço como redutora de danos. O enfermeiro tem por volta de 35 anos, cabelos crespos e curtos, grandes olheiras perenes. A agente de saúde devia ter por volta de 45 anos, loira e sempre usava grandes saltos que pareciam deslizar sem esforço pelas calçadas tortas e irregulares das cenas de uso. Ambos os profissionais possuíam ótimos vínculos com os usuários do serviço e frequentadores de cenas de uso.
Na ocasião fomos à casa do pai de C.C. Saímos paramentados da cabeça aos pés. Ao chegar avistamos C.C. na pequena sacada da casa que podia ser vista através do portão gradeado, ela comia uma maçã. Sua magreza era perceptível pelas roupas que pareciam estar flutuando a sua volta, como se não houvesse nada onde elas pudessem se agarrar. Ao caminhar da sacada ao portão ouve-se o sibilo no pulmão de C.C provocado pela falta de ar. Entramos e o enfermeiro afere os sinais vitais de C.C. que apresentam resultados alarmantes. 78 de saturação, 35 de movimento respiratório por minuto e frequência cardíaca de 150.
Por conta da Tuberculose era inviável que levássemos C.C ao CAPS AD; tanto pelo risco de infecção a outros usuários quando pelo perigo dela contrair o coronavírus no serviço. O enfermeiro aciona o centro de saúde cuja usuária é referenciada para pedir suporte, mas eles não acatam ao pedido. Em vista disso ele aciona uma unidade SAMU médica como tentativa de que C.C. tivesse cuidados apesar da recusa por parte dela de acessar um pronto atendimento. A recusa de C.C. de ir ao hospital era justificada pelas múltiplas violências e maus-tratos que ela já recebera nestes espaços por conta “da minha condição. De eu ser usuária de crack.”
A ambulância chega após 15 minutos, ao abrirem as portas da ambulância, uma médica, paramentada com botas e vestimenta azul escura com seu nome estampado no peito, desce e pergunta para nós onde está a paciente. O enfermeiro, já muito estressado e com certo desespero, aponta para C.C. e diz “é ela, ela ta dessaturando!”, afirmação que é prontamente respondida pela médica “paciente dessaturando comendo maçã eu nunca vi! Você realmente acionou o SAMU médico pra isso? Só pode estar de brincadeira. Eu tenho um monte de gente morrendo de COVID, sufocando e você ainda me faz bater ponto aqui?”.
Ficamos completamente desmoralizados. Trocam-se farpas entre a médica e o enfermeiro. Enquanto a médica expressa seu desgosto, reclamando que estamos no meio de uma pandemia e as pessoas estão morrendo, C.C. move-se lentamente até o interior da ambulância. Seus sinais não são aferidos e é entregue um termo para ela assinar que atesta que ela recusou socorros. Ela assina, a ambulância parte. Desmoralizados, partimos os 3 de volta ao CAPS AD.
***
Escolhi esta situação por pensar que ela tem potência de sintetizar diversos fatores que se repetiram diversas vezes em campo, mas que aqui aparecem aglutinadas: O abuso de substâncias e o preconceito que ela já havia sofrido que, combinados, fizeram com que C.C. recusasse cuidados hospitalares. A pandemia que demandava a totalidade dos recursos de saúde pública para ser combatida. A indignação da médica com o chamado da ambulância apesar da gravidade da situação. A desistência de oferecer cuidados que foi imposta aos profissionais por conta da combinação de todas estas contingências.
Conclusão
Argumento que, apesar de escolhas políticas realizadas em macrodimensões não estarem postas explicitamente no relato apresentado, ele nos ajuda a pensar como estas dimensões políticas influenciam na construção de mundo e nas possibilidades de atuação dos profissionais de saúde dentro das estruturas disponíveis do SUS. As atuações políticas, portanto, encontram-se expressas na recusa da médica do SAMU em oferecer o cuidado tido como adequado pelo enfermeiro ao qual acompanhei. A justificativa, dada pela médica em questão, para recusar colaborar com o pedido feito pela equipe que acompanhei não foi de que C.C. não precisava de cuidados. Mas que não poderiam ajudar por conta das demandas impostas pela pandemia.
O desenho da política pública que dá sustentação à RAPS, assim como o cotidiano dos profissionais que trabalham nestes serviços, passou por diversas mudanças ao longo dos últimos anos. A forma de cuidado nunca é perfeita, passando por diversas situações onde qualquer noção de “ideal” raramente é possível. As vezes as pessoas não conseguem “dar um jeito”, e mesmo quando conseguem hão de ser enfrentados muitos cansaços, impedimentos e frustrações.
Olhar para as práticas de cuidado que se tecem nas margens nos ajuda a compreender como os processos de cuidado se relacionam com seus lugares e também testemunhar a incapacidade da institucionalidade de dar conta da totalidade dos fenômenos da vida. Estes projetos de cuidado, nas duas dimensões trabalhadas aqui, estão em permanente movimento e atualização que geram fluxos, disputas políticas e dinâmicas relacionais específicas.
O documento “Diretrizes Para um Modelo de Atenção Integral em Saúde Mental no Brasil”, que mencionei no início deste artigo, anda na contramão da atuação cotidiana dos profissionais que cuidam de pessoas que cometem abuso de substâncias. Já a algum tempo as duas dimensões de cuidado que trabalhamos aqui encontram-se fora de sincronia, e os efeitos desse desencontro são perceptíveis em histórias similares a de C.C..
Apesar de não ter ido a cabo, as propostas deste documento continuam à sombra da RAPS e diversos atores como os que assinaram as diretrizes ainda pressionam politicamente para que a estrutura de cuidado que vem sendo construída nos últimos 15 anos seja desmontada.
Um dos principais argumentos deste setor é que “A assistência à Saúde Mental implementada pelos governos ao longo deste período [2010-2020] continua baseada nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) de eficácia não demonstrada como serviços de reabilitação e reinserção social”. Trata-se de um movimento que anuncia uma profecia autorrealizável: afirma que os serviços não funcionam ao mesmo tempo que os subfinanciam. Quando a única medida de eficácia é qualitativa em um processo que é profundamente subjetivo quem perde é quem mais precisa de cuidado. O cuidado (im)possível continua a acontecer apesar destas incongruências, mas estes ataques tornam cada vez mais concretas uma realidade onde não será mais possível “dar um jeito”.
[1] É mestrando pelo Programa de pós-graduação em Antropologia Social da Unicamp (PPGAS-Unicamp) e bacharel em Sociologia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da mesma universidade (IFCH-Unicamp). Atualmente estuda os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas e se interessa por termos ligados ao corpo, sofrimento, políticas públicas e saúde.
[2] Disponível em < http://crp16.org.br/wp-content/uploads/2020/12/e0f082_988dca51176541ebaa8255349068a576.pdf>. Último acesso 21/09/2021
[3] LOTTA, Gabriela. et. al. Nota Técnica a Pandemia de Covid-19 e os(as) Profissionais de saúde Pública no Brasil. 4ª Fase. - Rio de Janeiro: FGV/EASP - Fiocruz. Disponível em <https://portal.fiocruz.br/sites/portal.fiocruz.br/files/documentos/a-pandemia-de-covid-19- e-os-profissionais-de-saude-publica-no-brasil_fase-4.pdf>. último acesso em 31 de agosto de 2021.